sexta-feira, 17 de julho de 2009

Fragmenti veneris diei

«Um dia, ao voltar da escola, dei com uma obra protegida por uma cerca de ferro. Os pedreiros, antes de se irem embora, haviam pendurado um farolim de carboneto para avisar os transeuntes do perigo. Não estava mais ninguém na rua naquele momento, de modo que apanhei uma pedra e atirei-a contra o candeeiro de carboneto, que caiu ao chão partindo-se com singular estrépito. Nesse instante, materializou-se à minha frente um senhor que me perguntou por que razão fizera tal coisa. Fiquei a olhar para ele sem responder. Durante uns terríveis instantes o senhor e eu olhámo-nos sem dizer nada. Por fim, ele fez um gesto de censura e desapareceu.
Por que razão fiz aquilo? Talvez porque os meus pais passavam a vida a discutir. Talvez porque era o pior da turma. Talvez porque éramos pobres como ratazanas. Talvez porque jantávamos sempre acelgas. Talvez porque não tínhamos umas luvas com que evitar as frieiras. Talvez porque nunca, durante anos, estreei uma camisa, umas calças, um casaco, nem sequer, acho eu, uns sapatos. Talvez porque Deus não me aparecia. Poderia encher uma página de talvezes. Actualmente passeio todas as manhãs por um parque próximo da minha casa. À entrada do parque há um resguardo de vidro para esperar o autocarro, que às segundas-feiras, infalivelmente, aparece partido à pedrada. Partem-no durante o fim-de-semana os jovens que regressam dos seus divertimentos. É o seu último acto de afirmação antes de se enfiarem na cama. Por que razão o fazem? O que destroem ao destruir o resguardo? O que partiria eu aao partir o farol de carboneto?
Quando cheguei a casa tinha as pernas a tremer, pois, se o senhor que me surpreendera me tivesse levado à esquadra, teria acabado na prisão, coisa que era, por outro lado, o meu destino. Baptizei aquele indivíduo como o senhor Tálvez por razões óbvias, acentuando o «a» porque a palavra soava melhor sendo grave do que aguda. Tálvez. Durante uns exercícios espirituais, naquela época, um sacerdote disse-nos que Deus se manifestava sobretudo nas questões aparentemente pequenas da vida quotidiana. Assim que ouvi aquilo senti um calafrio. Compreendi que o senhor Tálvez era Deus. Quer fosse, quer não, o seu curioso comportamento mudou a minha vida. Nunca voltei a cometer um acto de falta de civismo, não tanto por medo de que me aparecesse, mas por temer decepcioná-lo. Um bom educador (também um bom pai) deveria ser capaz de levar a cabo intervenções deste tipo, tão indolores, mas tão eficazes, tão oportunas e exactas.»
Juan José Millás, O Mundo, Planeta Manuscrito, pp. 94-95.