Tópico 3 - Avaliação, mérito e competitividade
É pacífico afirmar que uma avaliação, seja qual for a actividade em que recaia, não pode ser utilizada para fins diversos daqueles em que é competente. Isto é, qualquer sistema de avaliação só pode pretender avaliar aquilo para o qual está realmente capacitado. Mas isto, que parece ser pacífico de afirmar, parece não ser pacífico de fazer.
É pacífico afirmar que uma avaliação, seja qual for a actividade em que recaia, não pode ser utilizada para fins diversos daqueles em que é competente. Isto é, qualquer sistema de avaliação só pode pretender avaliar aquilo para o qual está realmente capacitado. Mas isto, que parece ser pacífico de afirmar, parece não ser pacífico de fazer.
Na realidade, parece ser difícil resistir à tentação de colocar a avaliação ao serviço de qualquer fim. Actualmente a evocação do substantivo avaliação ocorre a propósito e a despropósito de tudo, como se tudo obtivesse resolução através da avaliação e como se o acto de avaliar fosse, por natureza, fácil, rigoroso e objectivo. Sabemos que ambas as coisas são falsas: nem a avaliação resolve tudo, nem, na maior parte das actividades, o acto de avaliar tem qualquer semelhança com a facilidade, o rigor e a objectividade. Sabendo-se isto, não se compreende a leviandade com que se procura esconder esta realidade e fazer da avaliação o que ela não é.
É o que acontece com o modelo de avaliação do desempenho docente, ainda em vigor: descentra-se do que verdadeiramente deveria e poderia fazer e concentra-se naquilo que não sabe nem deve fazer.
É o que acontece com o modelo de avaliação do desempenho docente, ainda em vigor: descentra-se do que verdadeiramente deveria e poderia fazer e concentra-se naquilo que não sabe nem deve fazer.
Vimos em posts anteriores (aqui, aqui, aqui e aqui) que a actual avaliação do desempenho docente pretende:
— avaliar o desempenho docente, a partir de um paradigma de professor sobre o qual não existe nenhum consenso;
— avaliar o mérito, sem saber como fazê-lo;
— reconhecer o mérito, apesar de não saber avaliá-lo;
— premiar o mérito em nome de uma moralidade de duvidosa fundamentação.
— premiar o mérito em nome de uma moralidade de duvidosa fundamentação.
Em «Erros a não repetir - 3» escrevi: «Um modelo de avaliação docente não pode, pois, enunciar como finalidade reconhecer e premiar o mérito dos professores. Se o fizer está a mentir, está a enganar: professores, alunos, pais, opinião pública. É uma ideia falsa que induz comportamentos desadequados e expectativas infundadas.»
Tentei explicar, nos quatro posts anteriores, por que razões, na minha opinião, um modelo de avaliação que tenha essa finalidade «está a mentir, está a enganar». Tentarei explicar agora por que razão afirmo que esse modelo também «induz comportamentos desadequados e expectativas infundadas».
Apresentar, social e profissionalmente, o reconhecimento e a premiação do mérito como aquilo que de mais elevado um profissional pode almejar significa introduzir, de modo mais directo ou menos directo, um outro elemento no processo: o elemento competitividade.
E se, em simultâneo, se diz que o reconhecimento e a premiação do mérito estão dependentes de um sistema de quotas (o que é claramente contraditório com o alegado desejo de reconhecer o mérito — curiosamente, nesta circunstância, já se aceita, de modo pacífico, a possibilidade de haver mérito não reconhecido e não premiado... — e mais contraditório é com o alegado imperativo moral do seu reconhecimento...), então já não estamos perante uma introdução indirecta do elemento competitividade, estamos perante uma opção deliberada de introdução da competitividade, como factor nuclear do processo.
A competitividade está pois, de um modo ou de outro, sempre associada à questão do mérito. É disso, então, que agora teremos de tratar: o problema da competitividade no desempenho docente.
Mas antes dessa abordagem específica, um breve apontamento acerca da competitividade, em geral.
A par do mérito e da avaliação, a competitividade é outro dos mitos emergentes, que tem medrado abundantemente. Não há sector de actividade em que não se fale de competitividade: todos temos de ser competitivos, a competitividade gera qualidade, a competitividade leva à inovação, a competitividade isto e aquilo... Apresentam-nos, depois, exemplos de competitividade que normalmente começam em Hong Kong, passam pelos Estados Unidos e acabam em Mourinho. Este último é, aliás, apresentado como o melhor exemplo de um português altamente competitivo e repleto de êxito. Sinónimo disso é a sua recente escolha como imagem de marca de um banco, que se quer muito competitivo. Publicamente, este treinador é a encarnação da competitividade.
Eu concordo que este treinador é a encarnação da competitividade, entendida como um valor em si mesmo. E é um bom exemplo para se compreender a realidade a que nos remete a competitividade.
Quando se elege a competitividade como valor primeiro, estamos normalmente a dizer que são os resultados aquilo que mais vale. Estamos a dizer que os resultados sobrelevam sobre os processos, e estamos, na prática, a dizer que o fins justificam os meios — os defensores do mito competitividade não aceitam como verdadeira esta última afirmação (moralmente colide com valores cristãos, de que a maioria deles se reclama, pelo menos publicamente), mas ela é verdadeira.
Como é verdadeiro afirmar que os resultados alcançados são sempre, e deliberadamente, utilizados para encobrir e/ou desvalorizar os meios. Aquele que é considerado como verdadeiramente competitivo é aquele que vence; e a vitória é aquilo que é necessário valorizar até à idolatração, para que nada do processo ofusque o resultado. A cultura da competitividade é a cultura dos resultados. É neste contexto que, relativamente ao treinador em causa, se faz deliberadamente a absolvição pública da boçalidade, da má educação, do insulto, da crítica grotesca em que ele é pródigo. É igualmente neste contexto que, para os cultores dos resultados, é deliberadamente menorizada a deficiente qualidade «artística» do futebol praticado pelas equipas que ele treina. A qualidade do espectáculo desportivo é prejudicada pelos processos tácticos daquele treinador, mas isso é subvalorizado em favor dos resultados alcançados.
Esta é a cultura da competitividade, que, directa ou indirectamente, incentiva o que não devia ser incentivado (o resultado pelo resultado) e que absolve o que não devia ser absolvido.
Referi este treinador, apenas porque ele é apresentado como um exemplo ilustrativo do arquétipo do homo competitus. Ora é este arquétipo que eu rejeito. E este é o arquétipo que se quer exportar para a docência.
Será, portanto, da aplicação do arquétipo do homo competitus na docência que tentarei tratar na próxima semana, porque esta escrita já vai demasiado extensa e o fim-de-semana já começou...
Apresentar, social e profissionalmente, o reconhecimento e a premiação do mérito como aquilo que de mais elevado um profissional pode almejar significa introduzir, de modo mais directo ou menos directo, um outro elemento no processo: o elemento competitividade.
E se, em simultâneo, se diz que o reconhecimento e a premiação do mérito estão dependentes de um sistema de quotas (o que é claramente contraditório com o alegado desejo de reconhecer o mérito — curiosamente, nesta circunstância, já se aceita, de modo pacífico, a possibilidade de haver mérito não reconhecido e não premiado... — e mais contraditório é com o alegado imperativo moral do seu reconhecimento...), então já não estamos perante uma introdução indirecta do elemento competitividade, estamos perante uma opção deliberada de introdução da competitividade, como factor nuclear do processo.
A competitividade está pois, de um modo ou de outro, sempre associada à questão do mérito. É disso, então, que agora teremos de tratar: o problema da competitividade no desempenho docente.
Mas antes dessa abordagem específica, um breve apontamento acerca da competitividade, em geral.
A par do mérito e da avaliação, a competitividade é outro dos mitos emergentes, que tem medrado abundantemente. Não há sector de actividade em que não se fale de competitividade: todos temos de ser competitivos, a competitividade gera qualidade, a competitividade leva à inovação, a competitividade isto e aquilo... Apresentam-nos, depois, exemplos de competitividade que normalmente começam em Hong Kong, passam pelos Estados Unidos e acabam em Mourinho. Este último é, aliás, apresentado como o melhor exemplo de um português altamente competitivo e repleto de êxito. Sinónimo disso é a sua recente escolha como imagem de marca de um banco, que se quer muito competitivo. Publicamente, este treinador é a encarnação da competitividade.
Eu concordo que este treinador é a encarnação da competitividade, entendida como um valor em si mesmo. E é um bom exemplo para se compreender a realidade a que nos remete a competitividade.
Quando se elege a competitividade como valor primeiro, estamos normalmente a dizer que são os resultados aquilo que mais vale. Estamos a dizer que os resultados sobrelevam sobre os processos, e estamos, na prática, a dizer que o fins justificam os meios — os defensores do mito competitividade não aceitam como verdadeira esta última afirmação (moralmente colide com valores cristãos, de que a maioria deles se reclama, pelo menos publicamente), mas ela é verdadeira.
Como é verdadeiro afirmar que os resultados alcançados são sempre, e deliberadamente, utilizados para encobrir e/ou desvalorizar os meios. Aquele que é considerado como verdadeiramente competitivo é aquele que vence; e a vitória é aquilo que é necessário valorizar até à idolatração, para que nada do processo ofusque o resultado. A cultura da competitividade é a cultura dos resultados. É neste contexto que, relativamente ao treinador em causa, se faz deliberadamente a absolvição pública da boçalidade, da má educação, do insulto, da crítica grotesca em que ele é pródigo. É igualmente neste contexto que, para os cultores dos resultados, é deliberadamente menorizada a deficiente qualidade «artística» do futebol praticado pelas equipas que ele treina. A qualidade do espectáculo desportivo é prejudicada pelos processos tácticos daquele treinador, mas isso é subvalorizado em favor dos resultados alcançados.
Esta é a cultura da competitividade, que, directa ou indirectamente, incentiva o que não devia ser incentivado (o resultado pelo resultado) e que absolve o que não devia ser absolvido.
Referi este treinador, apenas porque ele é apresentado como um exemplo ilustrativo do arquétipo do homo competitus. Ora é este arquétipo que eu rejeito. E este é o arquétipo que se quer exportar para a docência.
Será, portanto, da aplicação do arquétipo do homo competitus na docência que tentarei tratar na próxima semana, porque esta escrita já vai demasiado extensa e o fim-de-semana já começou...