quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Maioria relativa, minoria absoluta

Todos sabemos que o Partido Socialista tem, no Parlamento, uma maioria relativa, mas também todos sabemos que o mesmo Partido Socialista tem, no mesmo Parlamento, uma minoria absoluta. Todos sabemos não é bem, porque o Governo ainda não percebeu isso. O Governo ainda não percebeu que, se obteve um mandato para governar, esse mandato lhe foi conferido por uma minoria absoluta de portugueses. Isto significa, por outras palavras, que uma maioria absoluta de portugueses avaliou negativamente o que o PS fez em quatro anos e meio de governo e aquilo que prometeu fazer nos próximos quatro.
Isto é um facto, por mais voltas que se dêem. E este facto não é um facto aritmético, é um facto político, é um facto que tem um significado político objectivo que não pode ser desrespeitado. Desrespeitar o que o eleitorado manifestou é desrespeitar a própria democracia.
Mas é o que o Governo está a fazer. O líder do PS e do Governo tem uma concepção muito limitada (o que não é novidade) do que é governar em democracia, do que é a substância do regime democrático. Para Sócrates a democracia começa e acaba no acto eleitoral. Após o acto eleitoral, Sócrates olha para o quadro dos resultados e pergunta:«Quem ficou em primeiro lugar? Fui eu? Então sou eu que governo. Assunto encerrado, daqui a quatro anos voltaremos ao falar.» Se acontece o pormenor de não ter maioria absoluta, também pergunta: «Ninguém quer governar comigo, pois não?»
Das imensas leituras filosóficas que insinua já ter feito, Sócrates não conseguiu retirar nada que vá para além desta lógica. Nem dessas leituras, nem do exercício concreto da governação.
É por isso que Sócrates, quando teve a sua maioria absoluta, sempre fez questão de, publicamente, desvalorizar as manifestações, os protestos, as críticas, e arrogava-se o direito de não dialogar sobre nada nem com ninguém. Não precisava: ele tinha uma maioria absoluta de votos que, do seu ponto de vista, lhe dava automaticamente imunidade absoluta para fazer o que bem entendesse. Porque, para ele, a democracia começa e acaba no acto eleitoral. A dialéctica social não existe, ou, se existe, ela tem, do ponto de vista de Sócrates, o circunscrito significado de um ritual sindical, que as regras da democracia obrigam a tolerar.
Só quando o protesto ultrapassa os limites e coloca em risco a sua estabilidade política, é que, a muito custo e com muito pesar, o líder do PS procura contornar o problema, com o mínimo de estragos possível. Mas tudo o que fez ou faça nesse sentido, não o faz convictamente, não o faz porque considere que os outros podem ter fundadas razões para protestar, não o faz porque considere que é seu dever enquanto governante estar permanentemente atento ao que a realidade social lhe manifesta, não o faz porque considere que as pessoas reais e concretas não podem ser tratadas como números, não o faz porque considere a hipótese de estar errado, fá-lo exclusivamente como instrumento de manutenção do poder.
É por tudo isto que Sócrates, que agora não tem a maioria absoluta, quer comportar-se, na substância, como se a tivesse. As afirmações ontem proferidas por Jorge Lacão, sobre a avaliação docente, revelam a postura de sempre: o mundo inteiro diz que o modelo é medíocre e incompetente, mas o Governo, do alto da sua minoria absoluta, considera que não e que construir um novo modelo de avaliação está fora de questão. A maioria absoluta do Parlamento diz que o modelo tem de ser deitado ao lixo e que é preciso fazer outro (já há propostas), todos os sindicatos dizem o mesmo, outra maioria absoluta, a dos professores, não diz outra coisa, mas o Governo autista e arrogante afirma-se irredutível. E ameaça com uma querela jurídico-constitucional, dizendo claramente: podemos perder o jogo no campo, mas queremos ganhá-lo na secretaria.
A política, para Sócrates, é isto: um jogo de birras.
Sócrates não só governa mal como desprestigia a política.