sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Fragmenti veneris diei

«Bebeu um gole, olhou de novo o vinho — uma substância perfeita, uma cor que se ia confundindo com o suave calor da tarde, com aquela espécie de música que subia do jardim, dos canteiros de camélias, da sebe que se inclinava sobre o rio, até ali, à sala de onde o velho raramente saía. Voltou-se para ele, então:
"A minha família teve ligações com Angola. Foi há muito tempo, nos anos cinquenta, nos sessenta. Uma irmã casou e foi para Luanda. Voltou derrotada mas nós estamos habituados às derrotas, às políticas e às sentimentais, de modo que outro irmão partiu e voltou há trinta anos, mais ou menos, um retornado como tantos outros. Também derrotado, naturalmente. Esta casa acolheu todos os derrotados da nossa história, salvo erro. Há três anos, esse pobre homem, o preto, apareceu aqui e disse que queria comprar a quinta, as duas quintas, aliás, porque são duas. E começámos a falar, a negociar. Compreenda, senhor Ramos. Sou o último exemplar desta genealogia que vem de outro mundo, um mundo onde os pretos não apareciam com malas de dinheiro para comprar quintas no douro. Viu o meu filho? Um adolescente. se fosse no princípio dos anos setenta havia de viver em Luanda e de ter um descapotável branco ou vermelho para passear senhoras loiras e divorciadas na marginal. Eu conheci Luanda, de passagem. O meu irmão morreu. A minha irmã vive longe de tudo isto. Sou um viúvo velho à beira de nova derrota e fui um filho único que suportou a maluquice de dois irmãos. Nasci velho, senhor Ramos, nasci velho, destinado a conservar o que havia para conservar, enquanto houvesse gente que valesse a pena. De modo que agora admiti vender, vender tudo, vender a quinta, o vinho, a vista para o rio. E levaria daqui para o Porto, ou para Lisboa, os retratos da família, os retratos escondidos nas gavetas — ficaria rico, finalmente, perto dos noventa, a viver num apartamento com uma criada que me mudará a roupa quando eu já não puder, ou que me deixe morrer se eu lhe pedir. Tenho oitenta e quatro, não diga que não parece. O Douro prolongou a minha vida útil para lá do aceitável.»
Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, pp. 96-97.