quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O problema da negociação de questões que atingem princípios deontológicos e a dignidade profissional

Em abstracto
O termo «negociar» não deve ser aplicado na resolução de situações de conflito que atingem princípios deontológicos e/ou a dignidade profissional.
Quando duas partes iniciam aquilo que se denomina de processo de negociação, estão sempre presentes, de modo mais explícito ou menos explícito, as origens e as conotações comerciais («compra», «venda», «troca») que o termo «negociar» possui. Neste caso, não me refiro, evidentemente, à «compra» e à «venda», que não têm aplicação (ou não deveriam ter) no domínio da política e do sindicalismo, refiro-me ao conceito de «troca». É por isso que, quando se inicia uma negociação, é sempre lembrado às partes o pressuposto de que ambas têm de ceder, isto é: eu cedo/dou algo que tu recebes, e tu cedes/dás algo que eu recebo — trocamos. E se assim não for considera-se que não há verdadeira negociação.

Ora, na minha opinião, não é este o quadro em que deve decorrer a resolução de problemas que atingem princípios deontológicos e/ou a dignidade profissional, porque os princípios deontológicos e a dignidade profissional não são susceptíveis de «troca». Os princípios deontológicos e a dignidade profissional são valores incondicionais. Se lhes alteramos o estatuto de incondicionais, eles passam a ter valor venal e passam a valer o mesmo que uma ou duas décimas percentuais no aumento do vencimento, ou coisa similar.
Deste modo, partir para a resolução de problemas, que atingem princípios deontológicos e/ou a dignidade profissional, com o espírito de «negociar», de «trocar», significa que quem está do lado da defesa dos princípios e da dignidade vai, inevitavelmente, sair a perder, porque aquilo que pode «dar» é do domínio dos princípios e da dignidade e o que vai «receber» será sempre, em termos comparativos, de nível qualitativamente inferior.
Acresce que este quadro «comercial» não resolve verdadeiramente os problemas, apenas os «remedeia», e conduz ao descrédito da dita negociação, porque o que se retém desse processo é a transacção comercial em que se trocou o que não era susceptível de troca.

Defendo que quem está do lado dos princípios e da dignidade tem de partir para um processo destes, não para negociar, mas para discutir e para fundamentar racionalmente a defesa dos princípios e a defesa da dignidade. Tem de partir para o confronto racional e para o escrutínio rigoroso dos argumentos e das causas do conflito.
É apenas a via do confronto racional dos argumentos que pode possibilitar uma resolução séria de problemas desta natureza, e não a via «comercial». Nesta o que impera são os interesses, e são eles que ditam as «trocas» a realizar. Na via «comercial» tem de haver sempre trocas, independentemente da inexistência de qualquer razão que as justifique. E quem perde serão sempre os mesmos, serão sempre os que defendem os princípios e a dignidade, porque dão e nada podem receber que equivalha ao que dão.
Se nas circunstâncias do confronto argumentativo resultam, no final, posições inamovíveis, nenhum acordo deve ser celebrado e, consequentemente, cada parte assumirá as suas responsabilidades. O que acontece várias vezes.

Em concreto
Julgo ser pacífico considerar-se o actual problema da avaliação docente como um problema em que estão em jogo princípios deontológicos e de dignidade profissional, de modo, aliás, particularmente ponderoso.
Desta forma, pelas razões acima enunciadas, este problema não é resolúvel pela via «comercial», sem que haja perdas significativas para quem defende os princípios e a dignidade.
Neste contexto preciso, os interlocutores do Governo, sejam eles quais forem, quando se sentam à mesa das «negociações», não devem sentar-se para «negociar», mas para o confronto racional e para o escrutínio argumentativo.

Todavia, não foi isto que aconteceu nem é isso que está a acontecer. Foi com espírito «comercial» que os sindicatos e alguns partidos da oposição partiram para o processo de resolução do problema. Foram com a pré-disposição de trocarem «isto» por «aquilo», na lógica do «toma lá dá cá», que se sentaram à mesa das negociações.
Que o Governo vá com este espírito não é de admirar, porque o seu ponto de partida não é a defesa de princípios, é exclusivamente a defesa de interesses — interesses políticos rascas, como seja, o de não «perder a face», independentemente dos malefícios que isso provoque ao País e aos profissionais da Educação e, por consequência, aos alunos; interesses economicistas e interesses eleitoralistas — agora que os sindicatos e os partidos da oposição também se submetam à mesma lógica é que não se compreende. Aquilo que o Governo tem para dar tem valor venal, o que os sindicatos e os partidos da oposição têm para defender tem valor essencial.

Mas porque é a lógica «comercial» que impera, desenvolve-se à nossa frente o espectáculo de se andar a discutir verbos, de se defender com o mesmo à-vontade a suspensão do processo de avaliação e, logo a seguir, já não se defender a suspensão, mas a substituição e, algum tempo depois, e com à-vontade reforçado, já se defende novamente a suspensão. Discute-se a troca do fim da divisão da carreira pela finalização do 1º ciclo de avaliação, discute-se a troca dos efeitos para concurso dos Muitos Bons e Excelentes pela alteração de não sei o quê e mais isto que eu te dou e mais aquilo que tu me dás...
Nem o facto de existir uma maioria absoluta que se opõem ao Governo foi motivo suficiente para não se cair na «troca».
Nem o facto de ter existido um Compromisso Educação foi motivo suficiente para impedir as «transacções».
Nem o facto de estarmos perante um sistema de avaliação objectivamente incompetente, produzido por uma equipa ministerial de aventureiros irresponsáveis, que teve consequências desastrosas e da máxima gravidade, foi motivo suficiente para evitar o «comércio» negocial. Durante dois anos foi cometido um crime continuado, mas aceita-se passar uma esponja sobre esse crime continuado e sobre os seus resultados. Foi montada uma gigantesca farsa avaliativa, foi desenvolvido um processo que repugna, mas nem isso impediu o jogo do «deve» e do «haver».
Fechar 1.º ciclo como se nada tivesse acontecido, porque o que interessa agora é apenas o que aí vem, é um dos preços a «pagar».

Mesmo que não existisse força política suficiente para decretar o fim imediato de uma vergonha nacional, os sindicatos e alguns partidos da oposição nunca deveriam mostrar uma atitude de beneplácito, mais ou menos assumido, para com o branqueamento do que se passou durante dois anos.
Mas a lógica da «troca» não o permite. E esta é a lógica dominante. Que poderia ser usada na resolução de problemas menores, mas não na resolução de problemas que atingem princípios deontológicos e a dignidade profissional.