«Vivemos um momento particular do projecto liberal, tal como encontra plenamente a sua expressão no século XIX. Universalização do pensamento pela acção, tal como a prática da antinomia, da antítese e dos limites que fizeram o pensamento europeu, longe, por exemplo, do pensamento de continuidade chinês. Reconciliação da paixão e do interesse em nome da paixão do interesse económico, o único nobre, respeitável, venerável. Desligação do indivíduo face ao colectivo, é isto mesmo que o constitui e torna efectivos os direitos em que se baseia. E sobretudo, concentração da cultura no que permite a actividade, a alimentação, a ajuda, o desenvolvimento. O mundo é convocado para a sua utilidade. Nada poderá escapar, nem terra, nem vegetal, nem animal, tudo o que está vivo, corre, cresce, respira no mundo é convocado ao tribunal da sua utilidade económica, pesada, medida e julgada. Sedativos, bebidas com pouco álcool e divertimento, a cultura participa com ligeireza de um mundo muito pesado... Mergulhar logo de manhã numa história alegre, e os minutos nos transportes públicos parecem mais curtos; folhear ao almoço uma narrativa de viagens promete que noutro lugar uma outra coisa é possível, que torna a condição do homem urbano suportável, que dá ao assalariado a dignidade de um exílio interior e uma partida possível — evidentemente tão impossível como interdita, mas o essencial é que a cultura dá a representação. E sofrer com o bombardeamento de um filme de acção, sem retirada e sem tréguas, não é viver por procuração o herói, o santo ou o chefe que nunca seremos, para os quais já não há lugar em parte nenhuma — a não ser nos cemitérios?»Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.