terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Nacos

«Em primeiro lugar, havia o Dr. Bingham, um indivíduo frágil e bem-parecido do Lincolnshire, cujo lábio leporino por vezes se via sob o ninho do bigode pálido. Quando digo às vezes, refiro-me às ocasiões em que ele espreitava para dentro da minha boca aberta à procura de uma "língua com mau aspecto". O lábio leporino não tem a menor importância, e eu nem deveria tê-lo mencionado.
O Dr. Bingham não podia adivinhar a tristeza que me ia no coração. A minha vontade era morrer, mas ele ministrou-me um emético e, depois de eu ter vomitado as tripas — o que ele assegurara iria acontecer —, deu-me um purgante cor-de-laranja-vivo que tentei cuspir.
Ele era boa pessoa, estou certo disso, mas quando todo aquele martírio chegou ao fim, eu era um animalzinho indefeso, a desfazer-se em caca, e o comandante tinha recebido ordem do almirante do porto para levantar âncora. Através de uma cortina cinzenta de náusea e de dores de estômago, deite-me na rede de dormir e fiquei a ouvir o distinto homem do Yorkshire a gritar que não havia porra de vento e que não percebia porque tinha de abandonar o porto para que toda a gente desatasse a vomitar. Pediu desculpa por dizer porra (pelo que fiquei a saber que havia uma mulher connosco). Senti a quilha avançar a raspar pelo banco de areia e, ao mesmo tempo, o ruído de qualquer coisa a arrastar lá em cima.
Enchi o bacio. Dormi e acordei com os sinos de todos os quartos. O Samarand seguia a baloiçar, de velas desfraldadas, como roupa a secar numa corda. Eu vomitava, cagava e chorava. Não tinha pernas de marinheiro, mas precisava de chegar à retrete para despejar o bacio. Acordei de madrugada e dei com uma desconhecida a cuidar de mim. Era baixa, roliça e bonitinha, mas eu estava demasiado mal para sentir vergonha quando ela me limpou o rabo.
Mrs. Bingham, esposa do Dr. Bingham, tal como o marido, falava com a pronúncia do Lincolnshire. Permaneci deitado na rede. Ela deitou-se no beliche e acariciou-me a parte interior do pulso até eu pensar que ia enlouquecer.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.