terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Nacos

«Escapei de ir apanhar ar nessa ocasião, mas na manhã seguinte o médico conduziu-me ao tombadilho, onde ouvi de novo o grito de Camas à coberta; desta vez olhei para baixo e vi os soldados erguerem uma grande escotilha crivada de pregos e, dessa bocarra, sair, vinda do bojo do barco, uma infeliz raça de monstros e trogloditas com o mais pavoroso fedor. Com repugnância e fascínio, observei como esses seres faziam uma trouxa com a roupa de cama e a colocavam nas redes do cesto da gávea, e os rapazes... nunca se viam rapazes daqueles, com os olhos negros como os dos caranguejos, mirrados como uvas pretas rejeitadas pelo mundo.
Quando estavam todos reunidos, com as correntes a tilintar, bem comprimidos no tombadilho superior e rodeados pelos soldados com as suas armas e baionetas, o reverendo Potter fez as orações da manhã, o que levou vários prisioneiros, homens e mulheres, a ajoelhar-se, produzindo assim o mais pavoroso ruído de correntes a entrechocarem-se e a caírem com força na coberta da proa.Quando a seguir saímos para apanhar ar, tive medo não só do mar, mas desse enxame fervilhante, venenoso e negro, desses australianos, no ninho por baixo dos pés. Nesse dia frio e límpido mantinham-nos lá em baixo para sua própria segurança, mas eu ouvia o clamor e os gritos terríveis que chegavam lá acima sempre que a água invadia a coberta da proa. Não fazia ideia de quem eram, só sabia que aquelas criaturas assustadoras estavam dominadas pelo terror de se afogarem.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.