sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A sociedade ideal

Há dias, o primeiro-ministro e a ministra da Educação foram inaugurar mais uma creche. Televisão, rádio, jornais, discursos. Como é usual, Sócrates referiu estarmos perante mais um momento histórico — não há assunto em que ele participe que não seja histórico, que não seja um recorde, que não seja qualquer coisa que, com ele, acontece pela primeira vez e que a ele se deve e que até ao fim das nossas vidas a ele deveremos ficar gratos.
O motivo deste orgulho, informou o chefe do Governo, para além da inauguração em si mesma, foi a circunstância do funcionamento da creche ser de segunda a domingo, com abertura às sete da manhã e encerramento à meia-noite. Para Sócrates e para Isabel Alçada, trata-se de um must. Abrir às 7h e fechar às 24h é sinónimo de progresso e é um indesmentível sinal de que somos um país moderno, um país de futuro. Poder deixar um filho na creche às sete da manhã e poder ir buscá-lo às sete da noite, ou às oito, ou às nove, ou quase no dia seguinte, é, para algumas cabeças, nas quais se conta a do primeiro-ministro, uma prova de que estamos a pisar o caminho certo.
Assim, dizem-nos, estão criadas condições para os casais poderem ter os filhos que quiserem e ao mesmo tempo poderem prosseguir as suas vidas profissionais. O futuro será assim, o futuro será o paraíso: pais descansados, pais realizados profissionalmente e filhos a crescerem saudável e prolongadamente em creches, depois em jardins de infância e depois ainda em escolas integradas, de preferência, inseridas em mega-agrupamentos.
Para que este quadro corresponda à noção integral que Sócrates tem de sociedade ideal, falta apenas imaginar que na vida destas crianças e destes pais existem vários Magalhães, múltipla tecnologia e muita energia renovável. É para isto que Sócrates trabalha todos os dias e, em cada passo que julga estar a dar nessa direcção, a felicidade estampa-se-lhe no rosto.
Para Sócrates não importa que famílias reais a sua sociedade ideal irá formar. Para Sócrates não interessa que estes pais trabalhem nove, dez ou doze horas por dia. Não há problema, porque os filhos podem estar na creche até à meia-noite. Para Sócrates não interessa que estes filhos só vejam os pais quando já estão, eles e os pais, mortos de cansaço e de sono. Não há problema, porque a creche só fecha à meia-noite. Para Sócrates não importa que os pais tenham de passar o fim-de-semana a arrumar a casa e a fazer compras — as compras que durante a semana não conseguem fazer — e que, para isso, tenham de ir pôr os filhos novamente à creche. Não há problema, porque a creche está aberta ao sábado e ao domingo. Para Sócrates não importa que a vida partilhada entre pais e filhos fique reduzida a migalhas, a pequenos estilhaços de tempo, porque haverá sempre uma creche ou um jardim de infância ou uma escola integrada que assegurará a guarda dos filhos.

Sócrates nunca perceberá que o caminho tem de ser o inverso, que temos de criar condições para que os pais tenham mais tempo para os filhos e para si próprios, que estejam mais tempo em casa e menos no trabalho. Sócrates nunca perceberá que é inaceitável que um profissional fique sujeito à escravatura das superiores necessidades da empresa, prescindindo de ter vida autónoma ou familiar, como hoje cada vez mais acontece. É este modelo de sociedade que a idolatrada actividade privada cada vez mais está a desenvolver, sem respeito por nada nem por ninguém, a não ser pelas denominadas «exigências do mercado».
Sócrates não só se conforma com esta realidade, como a enaltece e para ela trabalha. Sócrates não vê para além dos clichés da moda: leis do mercado, computadores, energias renováveis e gadgets tecnológicos.
O mundo dele começa e termina nestes clichés. Nem a meia dúzia de frases de Bernstein, que decorou e que recorrente e normalmente repete com grande despropósito, lhe servem para ver um pouco mais além.