sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Fragmenti veneris diei

«O rapaz sentou-se ao seu lado, na parte de trás. Epifanio sentou-se ao volante. Quando deixaram as ruas de terra batida de Villaviciosa e o carro rodava pelo deserto, o chefe da polícia perguntou-lhe como se chamava ele. Olegario Cura Expósito, respondeu o rapaz. Olegario Cura Expósito, repetiu Negrete, olhando para as estrelas, curioso nome. Durante algum tempo ficaram em silêncio. Epifanio tentou sintonizar uma emissora de Santa Teresa mas não conseguiu e desligou o rádio. Através da janela o chefe da polícia avistou, a muitos quilómetros de distância, o brilho de um raio. Naquele momento o carro deu um solavanco e Epifanio travou e saiu para ver o que é que ele tinha atropelado. O chefe da polícia viu-o desaparecer na estrada e depois viu a luz da lanterna de Epifanio. Abriu a janela e perguntou-lhe o que é que se passava. Ouviram um tiro. O chefe abriu a porta e baixou-se. Deu uns quantos passos para desentorpecer as pernas, até que a figura de Epifanio apareceu sem pressas. Matei um lobo, disse ele. Vamos vê-lo, disse o chefe da polícia, e os dois voltaram a penetrar na escuridão. Na estrada não havia sinal de faróis de qualquer carro. O ar era seco embora às vezes viessem rajadas de vento salgado, como se antes de se estender no deserto esse ar tivesse limpado a superfície de uma salina. O rapaz olhou para o tabliê iluminado do carro e levou as mãos à cara. A alguns metros dali o chefe da polícia ordenou a Epifanio que lhe passasse a lanterna e focou o corpo do animal estendido na estrada. Não é um lobo, pá, disse o chefe da polícia. Ah, não? Olha para o pêlo dele, o do lobo é mais luzidio, mais brilhante, além de que não são tão parvos que se deixem atropelar por um carro no meio de uma estrada deserta. Vamos lá ver, vamos medi-lo, segura na lanterna. Epifanio focou a luz no animal enquanto o chefe da polícia o esticava e procedia à medição a olho. O coiote, disse, mede de setenta a noventa centímetros, contando com a cabeça, quantos dirás tu que este mede? Uns oitenta?, disse Epifanio. Correcto, disse o chefe da polícia. E acrescentou: o coiote pesa entre os dez e os dezasseis quilos. Passa-me a lanterna e levanta-o, não te vai morder. Epifanio pegou no animal morto ao colo. Quanto achas tu que pesa? Pois entre doze e quinze quilos, respondeu Epifanio, como um coiote. É mesmo um coitoe, meu parvo, disse o chefe da polícia. Focaram os olhos do animal com a luz. Talvez estivesse cego e por isso não me tenha visto, disse Epifanio. Não, não estava cego, disse o chefe da polícia enquanto observava os grandes olhos mortos do coiote. Depois deixaram o animal ao lado da estrada e voltaram para o carro. Epifanio tentou sintonizar outra vez uma emissora de Santa Teresa. Só ouviu ruído de fundo e desligou-a. Pensou que o coiote que havia atropelado seria uma fêmea e que andaria à procura de um lugar seguro para parir. Por isso não me viu, pensou, mas a explicação não lhe pareceu satisfatória. Quando, em El Altillo, apareceram as primeiras luzes de Santa Teresa, o chefe da polícia quebrou o silêncio em que tinham mergulhado os três. Olegario Cura Expósito, chamou. Sim, senhor, respondeu o rapaz. E os teus amigos como te chamam? Lalo, disse o rapaz. Lalo? Sim, senhor. Ouviste, Epifanio? Ouvi, disse Epifanio, que não conseguia deixar de pensar no coiote. Lalo Cura?, perguntou o chefe da polícia. Sim, senhor, confirmou o rapaz. É uma brincadeira, não é? Não, senhor, é assim que me chamam os meus amigos, disse o rapaz. Ouviste Epifanio?, perguntou o chefe da polícia. Claro que sim, ouvi, disse Epifanio. Chama-se Lalo Cura, disse o chefe da polícia, e desatou a rir. Lalo Cura, La Locura, topas? Sim, sim, é claro, disse Epifanio, e também desatou a rir. Pouco depois os três puseram-se a rir.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 445-446.