segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Retratos de Sócrates (13)

«No dia 20 de Fevereiro de 2005, à noite, no Hotel Altis, em Lisboa, sentei-me na primeira fila para ouvir o discurso de vitória de José Sócrates, que conseguiu uma espectacular maioria absoluta, com 45,05% e a garantia de 120 deputados. [...]
Num ápice, todas as dúvidas sobre o passado de José Sócrates desapareceram. A legitimidade popular é assim, embriaga os espíritos mais pobres. O projecto da Cova da Beira, o mistério da aventura empresarial da Sovenco, as manobras de bastidores para a adjudicação da biblioteca da Covilhã, as casas no prédio "Heron Castilho", os mega negócios públicos com o "Euro 2004" e o programa "Polis", os sinais exteriores de riqueza e o "Caso Freeport" ficaram para trás, pareciam irremediavelmente esquecidos. [...] Em Portugal, enfrentar um líder com maioria absoluta, em pleno estado de graça, constitui crime de lesa comunicação social. O resultado esmagou qualquer reserva que pudesse ensombrar o futuro. Como José Sócrates o sabia bem. Ele conhece muito bem os jornalistas e os donos dos grupos económicos que controlam os media. Ele estava no lugar certo, no momento certo. [...]
O primeiro-ministro menos preparado de todos os tempos, com características e traços de carácter perigosos para o exercício do cargo, deu [todavia] provas de maturidade. A chamada de 'independentes' para o governo, como Diogo Freitas do Amaral e Luís Campos e Cunha, deixaram meio mundo surpreendido. Naquele momento, não tive a serenidade e lucidez de concluir que se tratava apenas de um gesto instrumental, da necessidade de José Sócrates se legitimar no seio da elite, dos académicos e dos velhos políticos fundadores do regime democrático. Atormentado por complexos provincianos e consciente da falta de curriculum universitário, deu uma prova de grande sabedoria ao rodear-se de ministros reconhecidos pela comunidade. [...]
[Mas] não foi preciso muito tempo para perceber até que ponto o primeiro discurso de tomada de posse, em 12 de Março de 2005, estava repleto de ilusões, para não lhe chamar completas mentiras políticas O tempo provou que nunca um governo, desde o 25 de Abril, usou tanto a propaganda e a estratégia de anúncios, alicerçada em gabinetes internos e agências de comunicação pagas a peso de ouro, para ganhar a batalha da opinião pública. Se os anúncios se concretizavam ou não, isso era outra conversa. Não interessava nada. O objectivo era passar a mensagem de que se estava a fazer, fazer, fazer, não interessa se bem, mal ou melhor. [...]
Esta perspectiva, associada a uma política de permanente intimidação dos jornalistas, ganhou asas. Contra o escrutínio, a palavra do governo sobrepunha-se. E quando não era suficiente, então entrava a lógica da pressão, que, por coincidência ou não [...] — resultava na maior parte dos casos em substituições, afastamentos e demissões dos jornalistas mais críticos. [...]
Com a investigação jornalística a morrer aos poucos, José Sócrates tinha caminho aberto para algumas das medidas mais emblemáticas do seu mandato, e também as mais perigosas em termos de transparência. A legislação dos célebres Projectos de Interesse Nacional (PIN) foi aprovada de forma fulminante. No dia 30 de Abril de 2005, o Conselho de Ministros aprovou a resolução que criou o Sistema de Acompanhamento dos Projectos de Potencial Interesse Nacional. Ainda nem sequer tinha aquecido a cadeira do poder, deu o passo em frente, uma medida que lhe concedia um enorme poder junto dos investidores.»
Rui Costa Pinto, José Sócrates - o Homem e o Líder, Exclusivo Edições, pp. 111-116.