«Quando o tio-pai regressava do giro das vendas, inspeccionava-me o quarto, a almofadinha cor-de rosa-batida, redondinha, lisa, sem mancha da saliva nocturna babada durante o sono, um cabelo descuidado tombado na carpete, a colcha de retalhos lisa como um fio de prumo, as bonequinhas lavadas e penteadas perfiladas na prateleira de contraplacado por cima da cabeceira da cama, o trem de louça de plástico arrumadinho, os dois pares de sapatos na sapateira da criança, as três camisinhas na gaveta superior da cómoda, as saias e o casaquinho de veludo com gola de pele fingida, cor de mostarda, no guarda-fato estreito, o tio-pai passava o dedo indicador sobre o tampo de marmorite da mesinha-de-cabeceira, nem um grãozinho de pó, espreitava por baixo da cama, nem um grãozinho de pó, tudo limpinho, clamava o tio-paizinho, fiada branca dos dentes ostentada, tem direito a dois caramelozinhos, um com recheio de chocolate, outro de licor de anis, a tia-mãe ralhava da cozinha, licor é álcool, turva a mente, chocolate cria cáries, o dentista é caro, eu, atormentada pelo pavor do álcool, escolhia o caramelo de chocolate, sugava-o de consciência pesada, enrolando-o na língua, chupando-o a caminho da casa de banho, bochechava com água abundante (a tia-mãe gritava da cozinha, não gastes a água, está pelo olhos da cara), limpando-a do sabor pecaminoso do chocolate. Saias e blusas escuras no Orfanato, proibida de me perfumar, usar batom ou realçar os olhos com rímel, cara lavada a sabão azul e branco, ordem da Cavalgadura, a tia-mãe vestia-me cor-de-rosa no fim-de-semana de regresso do marido, este sentava-me ao colo, figurava um índio mau, um ladrão de subúrbios, simulava gestos bruscos de um mulato aciganado, ou um cigano amulatado, por vezes fingia-se de ratazana de esgoto, lambuzava-me o pescoço com beijos, eu sujeitava-me, mirando ansiosa a tia-mãe a fazer croché na poltrona verde, lançando olhares oblíquos para o rádio novo, apagado, poupança na conta da electricidade, a tia-mãe soerguia-se, alisava as pregas da saia, perguntava quem queria batatas fritas, eu batia palminhas, chiava entusiasmada, eu, eu, aproveitava para me sacudir do corpo do tio-pai, seguindo a tia-mãe para a cozinha, esta inspeccionava o saco de rede das batatas na despensa, temos poucas, poucas mas grandes, só fritamos duas, uma para ti, outra para o tio-pai eu não quero; o tio-pai ligara a rádio da sala, embevecido, atento ao discurso de Oliveira Salazar, o Ditador-Superior, como lhe chamava, obrigando-me a ouvir a totalidade do discurso, ilustrando com exemplos simples o raciocínio subido do Presidente do Conselho.»
Miguel Real, A Ministra, pp. 15-16.