quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Um homem de coragem

O último livro que li de Miguel Sousa Tavares foi No Teu Deserto. Um livro pequeno, mas custoso de ler. Custoso, porque são cento e poucas páginas de um contínuo, persistente e maçador desfiar de lugares-comuns. Quando concluí a leitura, pensei: se eu tivesse escrito isto, não seria capaz de propor a sua publicação a ninguém. Guardava tudo e, na primeira oportunidade: papelão. Mas Miguel Sousa Tavares foi capaz e vendeu com sucesso. O ter vendido com sucesso, em si mesmo, não revela particular mérito. Qualquer rapariguita ou qualquer rapazola que tenha um arremedo de programa na televisão e que se tenha na conta de escritora ou escritor, alinhava duas ou três banalidades em meia dúzia de folhas, manda publicar e vende com sucesso garantido. Por este lado, portanto, Miguel Sousa Tavares não fez nada de assinalável. O que já considero assinalável e meritória é a coragem que Miguel Sousa Tavares, mais uma vez, revelou possuir. Apenas um homem corajoso seria capaz de propor a um editor que publicasse tanta vulgaridade. Eu já sabia, de outras leituras, que Miguel Sousa Tavares se considerava um homem particularmente corajoso, mas não imaginava que o fosse àquele ponto.
Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que Miguel Sousa Tavares continua, nos dias que correm, a ser um homem corajoso. Um homem destemido. Um homem que vai sempre em frente. É assim que ele se vê, é assim que ele gosta de se ver. E eu também o vejo assim.
Vou explicar porquê.
Comecei a vê-lo assim, como homem sem medo, há cerca de seis ou sete anos, não posso precisar. Antes disso, lia com prazer e admiração as crónicas semanais que ele escrevia no Público. Nessa altura, não o via como o homem que transbordava a coragem que agora transborda. Via-o como um indivíduo lúcido, preocupado com a res publica, e que exercia de pleno direito e de modo fundamentado o escrutínio da nossa vida política. Eu via isto, mas via mal.
A partir de certa altura, comecei a ver outras coisas. Comecei a ver os desmentidos que alguns dos visados pelas suas críticas semanais lhe dirigiam. Comecei a ver as resposta que Miguel Sousa Tavares lhes dava. E comecei a ver que os desmentidos eram mais bem fundamentados que as críticas e as respostas de Miguel Sousa Tavares. Comecei a ver que Miguel Sousa Tavares às vezes falava de cor, falava sem ter tido o trabalho prévio de se informar com rigor sobre o que estava a falar. Depois, comecei a ver que Miguel Sousa Tavares falava muitas vezes de cor. Finalmente, vi que Miguel Sousa Tavares falava de cor vezes demais.
Deixei de o ler e de o ouvir (o cronista, porque ao «escritor» ainda abri a excepção de ler o tal No Teu Deserto, de que rapidamente me arrependi). Mas foi na altura em que deixei de o ler e de o ouvir que tive de reconhecer que Miguel Sousa Tavares era um homem corajoso: apenas um homem corajoso conseguiria dizer com tanto à-vontade os dislates que ele dizia. Só um homem corajoso podia ter a consciência de que não sabia nada do que estava a falar e, mesmo assim, falar, falar, falar.
Tive nova prova disso anteontem, segunda-feira. Algumas pessoas amigas fizeram-me chegar a informação de que Miguel Sousa Tavares tinha falado no jornal da SIC, e que, novamente, com a coragem que não o abandona, tinha voltado a dizer barbaridades, falsidades e outras maldades acerca dos professores. Esses meus amigos acompanharam esta informação com alguns impropérios, dos quais revelo apenas o mais soft: «o gajo é um grandessíssimo mentiroso!»
Eu sabia que ele era corajoso, mas não o tinha em conta de mentiroso. Para me certificar, fui ao Youtube ver o que ele tinha dito, na SIC.
Entre outras coisas, Miguel Sousa Tavares disse, e cito com rigor religioso: «[Com o segundo Governo de Sócrates], os professores passaram a ganhar todos mais automaticamente e vão ser todos classificados com Muito Bom e Óptimo.»
Peço desculpa aos meus amigos, mas este homem não mente. Este homem não é um mentiroso. Lamento, mas não é. Aquele que mente sabe o que diz e, propositadamente, falseia a realidade. Ora, Miguel Sousa Tavares não mente, porque Miguel Sousa Tavares não sabe o que diz, não sabe do que está a falar, não faz a mais pequena ideia do que está a dizer. Deste modo, deve ser-lhe feita justiça: Miguel Sousa Tavares não é um mentiroso. Pelo contrário, Miguel Sousa Tavares confirma ser, isso sim, um homem corajoso. Não faz a mínima ideia do que está a falar, mas fala. O que é um claro sinal de coragem. Não sabe o que diz, mas diz. Outra confirmação da sua coragem. Tem consciência de que não possui qualquer informação que confirme o que afirma, mas afirma. Mais coragem ainda. Não há uma única verdade no que profere, mas profere. Não é um homem corajoso? É. Desmedidamente.
Ora, é de homens assim que o País precisa. Homens que digam o que lhes vem à cabeça, sem lhes interessar saber se é verdadeiro ou falso. Homens que não perdem tempo com pruridos ou minudências dessas.
De homens assim é que o País precisa. Em particular, se quiser andar bem informado.

P.S. Agora que soube que comecei a «ganhar mais automaticamente» e que tive uma classificação de «Muito Bom ou de Óptimo», aproveito a circunstância para perguntar ao bom mensageiro se também me saberá informar onde poderei levantar o tal aumento e, se não for pedir muito, onde poderei requisitar o certificado com a tal classificaçãozinha.
Não imagina como lhe ficaria grato.

Às quartas

Invocação da Ursa Maior

Ursa Maior, desce noite hirsuta,
animal de pêlo de nuvens e olhos antigos,
olhos estelares;
irrompem cintilantes de espessura
as tuas patas e garras,
garras de estrelas;
atentos, vigiamos os rebanhos,
e, ainda que fascinados por ti, evitamos
os teus flancos cansados, os teus dentes aguçados
meio descobertos,
velha ursa.

Uma pinha: o vosso mundo.
Vós: as suas escamas.
Movo-o, faço-o rolar
dos pinheiros do princípio
aos pinheiros do fim:
farejo-o, tenteio com o focinho
e arrebato-o com as garras.

Que tenhais medo ou não:
deitai o vosso óbolo na caixa tilintante e dai
ao cego uma boa palavra,
para que tenha a Ursa pela trela.
E temperai bem os cordeiros.

Poderia acontecer que esta Ursa
se escapasse e já não ameaçasse
antes desse caça a todas as pinhas
caídas dos pinheiros, grandes, aladas,
despenhadas do Paraíso.

Ingeborg Bachman
(Trad.: José Lima)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Registos do fim-de-semana

'O Governo não é sério a negociar' (Passos Coelho)

Cavaco pressiona PS e PSD a aplicarem receita do FMI

Portugal é o país com pior execução orçamental
Sol (24/9/10)

Governo suspende negociações e promete demissão se PSD chumbar Orçamento

O Governo não cumpriu o plano de extinção de serviços recomendado em 2006, acusa o autor do PRACE

Fisco perdeu um quinto dos funcionários em nove anos
Público (24/9/10)

Novas Oportunidades facilitou o acesso a 530 caloiros

Estrangeiros fogem da dívida portuguesa

Concurso na AR deixa de fora licenciados de Bolonha
Expresso (25/9/10)

Ministro das Obras Públicas garante que não desistiu do TGV

Juros da dívida pública com novo recorde histórico
Público (25/9/10)

«O Governo não é sério a negociar», disse Passos Coelho, e acrescentou: «O líder do PSD não voltará a reunir com o primeiro-ministro, em privado, sem a presença de outras pessoas que testemunhem o que lá se passar.»
Alguma destas afirmações causa admiração? Foi um choque ouvirmos estas gravíssimas acusações? Na verdade, ninguém ficou admirado nem chocado. E um dos problemas de Portugal é este: é um dado comummente adquirido que o Governo não é sério e que o primeiro-ministro não é uma pessoa confiável.
É sabido que Portugal enfrenta, desde há muitos anos, problemas graves — da Economia à Educação, passando pela Justiça, o rol é imenso —, mas, neste momento, parece ser claro para todos que esses problemas foram e continuam a ser potenciados e agravados por uma causa não política, mas psicológica ou de personalidade. José Sócrates é, em si mesmo, uma inesgotável fonte de problemas para Portugal. Para além das inúmeras trapalhadas em que sempre andou e anda metido, e que o descredibilizaram irremediavelmente, para além da sua objectiva impreparação para o cargo, o chefe do Governo sempre colocou a sua vaidade pessoal e a sua desmedida arrogância à frente dos interesses do País. A sua incontrolável sede de poder e de protagonismo cega-o. Enquanto for ele o primeiro-ministro, Portugal não só não resolverá nenhum dos seus problemas, como os agravará.

Entretanto, o País vai de mal a pior: temos o pior desempenho orçamental dos países do Sul da Europa, como foi divulgado pela economista-chefe do BPI; o Governo não foi capaz de fazer o que tinha obrigação de fazer, isto é, de cumprir o seu Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), que, na altura, foi anunciado com enorme pompa e circunstância; os juros da dívida pública atingem novo recorde absoluto; e o sui generis ministro das Obras Públicas continua a dizer que o TGV vem já aí.

Entretanto também, o regabofe das Novas Oportunidades continua a dar que falar. Finalmente!, digo eu, e diz muita outra gente. Finalmente, estão a dar conta que para além do rei ir nu também é trapaceiro.

A propósito de praxes — a opinião de Pedro Valadares

Por estes dias, as nossas principais cidades enchem-se do vergonhoso espectáculo das praxes, ditas, académicas. Alunos de capa e batina - ou pior, como é o caso das novas universidades regionais ou privadas, que tiveram de inventar traje que lhes dê um passado ou tradição que não têm - impõem tratos de polé aos «caloiros» e estes aceitam as maiores humilhações na certeza de que, para o ano, vingar-se-ão noutros desgraçados. Pintados, sujos, reduzidos à dimensão de «coisa», alvos de chantagem soez (ou alinhas, ou não és dos nossos; se não alinhas não terás amigos e a tua vida vai ser um inferno). As autoridades académicas nada fazem ou dizem. Instituições que deviam assentar no primado da decência e da inteligência são, por acção ou omissão, coniventes com os comportamentos rascas das futuras elites do país.

Hoje, na Rua Augusta, vi um bando de alunos de Farmácia, que gritava alarvemente e obrigava os «caloiros» a ajoelharem e a dizerem um conjunto de parvoíces. Ninguém se revoltava. O restante povo sorria e apreciava. É triste!

Pedro Valadares

Hoje

Informação enviada por Paulo Ambrósio


domingo, 26 de setembro de 2010

Pensamentos de domingo

«Os que governam preferem o engano que os deleita à verdade que os incomoda.»
Marquês Maricá

«É barato construir castelos no ar e bem cara a sua destruição.»
François Mauriac

«A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas tristes, e a teologia, pecadores.»
Martinho Lutero
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.


John Coltrane

sábado, 25 de setembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

Os filósofos têm dedicado muitas horas do seu tempo e muitas páginas da sua escrita à reflexão sobre a Morte. A essa reflexão temos feito referência nos últimos sábados, mas hoje, para aliviar o ambiente, vamos apenas transcrever algumas histórias que não sendo propriamente filosóficas revelam uma inegável sabedoria no modo de lidar com a ela:

«Mickey acaba de falecer e a mulher, Judy, dirige-se à agência funerária [onde já se encontrava o corpo do falecido]. Quando vê o marido, Judy começa a chorar. Um empregado tenta consolá-la. No meio das lágrimas, Judy explica que Mickey está a usar um fato preto e sempre quisera ser enterrado num fato azul. O empregado explica-lhe que é um procedimento habitual vestirem os corpos com um fato preto, mas que vai ver o que pode fazer.
No dia seguinte, quando Judy regressa à agência funerária para estar um último momento com Mickey, sorri entre lágrimas — Mickey tem um fato azul vestido.
— Como é que conseguiu arranjar aquele bonito fato azul? — pergunta ao empregado.
— Bem — respondeu o empregado —, ontem, depois de a senhora sair, foi trazido um homem do mesmo tamanho do seu marido vestido com um fato azul. A mulher dele estava muito perturbada porque ele sempre quisera ser enterrado com um fato preto. Depois disso, só foi preciso trocar as cabeças.
[...]
Jack tinha falecido e o funeral estava a decorrer no cemitério. Jennifer, sua mulher há mais de 40 anos, tinha os olhos marejados de lágrimas. No final da cerimónia, quando o caixão estava a ser levado para fora da igreja, a carreta chocou acidentalmente com a soleira da porta. Para absoluto choque de todos os presentes, ouviram um leve gemido vindo de dentro do caixão. Abriram-no e encontraram Jack vivo. Maravilha das maravilhas! Nunca se vira milagre maior.
Jenny e Jack viveram juntos mais 10 anos, e depois Jack morreu. A cerimónia decorreu no mesmo cemitério. No final da cerimónia, quando o caixão estava a ser levado na carreta, Jenny gritou:
— Cuidado com a soleira da porta!
[...]
A empresa de Joe oferece-lhe um bilhete para a Supertaça, mas, quando chega ao estádio, Joe constata que o seu lugar é na última fila, num canto do estádio. A meio da primeira parte, vê através dos binóculos um lugar vazio na décima fila, perto da linha dos 50 metros. Decide arriscar e dirige-se para o lugar vazio.
Ao sentar-se, Joe pergunta ao homem que está ao seu lado:
— Desculpe, está alguém aqui sentado?
— Não — responde o fulano.
— É incrível! — exclama Joe. — Quem, no seu juízo perfeito, teria um lugar destes para a Supertaça e não o usaria?
— Bem, na verdade o lugar pertence-me — diz o homem. — Era suposto ter vindo com a minha mulher, mas ela faleceu. É a primeira Supertaça que não vemos juntos desde que nos casámos em 1967.
— Que pena — diz Joe. — Mas não conseguiu arranjar ninguém para ocupar o lugar? Um amigo, um familiar?
— Não — responde o homem. — Estão todos no funeral.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.80-84.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Povo embasbacado. Elite medíocre

Observar o que se passa na política portuguesa é uma dor de alma, de peito, de tudo.
De todos os lados, os comportamentos e a linguagem dos responsáveis políticos constrangem quem ouve e vê. À mescla de desnorte, arrogância e incompetência de Sócrates e do PS junta-se idêntico desnorte e idêntica incompetência do PSD (salva-se a ausência de arrogância e de pesporrência por parte de Passos Coelho. Valha-nos isso!). Os outros partidos alternam entre a crítica e a denúncia justas e certeiras e o «bitaite» proferido, não poucas vezes, em linguagem chã.
Aqueles que deveriam dar o exemplo comportam-se como catraios, brincam com coisas sérias, e o povo assiste complacente.
Mas, desgraçadamente, temos aquilo que merecemos.
O nosso comportamento colectivo reduz-se à bandeira na janela, ao insulto ao árbitro ou ao deleite embasbacado por um rapaz que dá uns pontapés numa bola e que acumula gel na cabeça como dinheiro no banco. Como diz a canção, não importa sol ou sombra, futeboladas é que é, desde que o trigésimo quinto empréstimo pedido ao banco ainda assegure as aparências nos próximos meses. E quando deixar de assegurar, alguma coisa se há-de arranjar para desenrascar.
Quando a futebolada não rende, inicia-se, então, o coro das lamentações, do choradinho e do «Valha-me Nossa Senhora!» Mesmo quando surgem manifestações de protesto, por maiores que sejam, esse protesto, na realidade, não passa de um arrufo, provocado por um conjuntural interesse próprio atingido ou por umas convicções da treta que rapidamente são esquecidas.
Vivemos adormecidos ou pasmados ou a pedir. São os três estados de alma que melhor nos caracterizam.
Agora, para além do adormecimento e do pasmatório vivemos a fase da pedinchice. Pedimos dinheiro a toda a gente. Pedimos dinheiro para pagar a incompetência de Sócrates e a nossa incompetência — a incompetência de Sócrates, porque levou o país à iminência da bancarrota, e a nossa incompetência, porque não sabemos governar as nossas vidas; pedimos encarecidamente que confiem em nós e que não nos cobrem juros muito altos; e já pedimos, até, que o FMI nos venha salvar. A intelectualidade económica e a intelectualidade mediática já revela esse desejo e essa ânsia. Não temos dinheiro nem temos vergonha.
Um povo embasbacado e uma elite medíocre. É nisto que estamos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

São jovens, não pensam

Há dias, ouvi, no banco, o diálogo que se segue, entre um rapaz e a funcionária que o atendia.
— Não chega — respondeu a funcionária do outro lado do balcão.
— Não chega? O Bilhete de Identidade não chega para provar que já tenho dezoito anos, que já sou de maioridade?! — espantou-se o jovem que estava ao meu lado.
— Não, não chega — insistiu a funcionária.
— Para além de eu estar aqui em carne e osso e de trazer o meu Bilhete de Identidade que indica a data do meu nascimento, que foi há mais de dezoito anos, que é que eu tenho de fazer mais para provar que sou de maioridade? Pode dizer-me? — perguntou ironicamente o rapaz.
— Para além do B.I., deve trazer o seu Cartão de Contribuinte...
— Mas o número de contribuinte já vocês o têm aí na ficha da minha conta. Sem o meu Cartão de Contribuinte não teria sido possível aos meus pais abrir esta conta em meu nome, quando eu era miúdo, e que agora quero movimentar — interrompeu o meu jovem vizinho de balcão.
— Sim, é verdade, nós temos aqui o seu número fiscal, mas tem de trazer o cartão. E, para além disso, ainda tem de trazer um comprovativo de morada e outro de ocupação — concluiu a bancária.
— Um comprovativo de morada? Que é isso? — inquiriu o rapaz, já a ferver.
— É um documento que indique qual é a sua morada, por exemplo: o recibo da EDP, da Água, do Gás, qualquer recibo em seu nome que tenha o endereço de sua casa — respondeu a funcionária.
— Mas eu ainda não saí de casa. Vivo com os meus pais. E, felizmente, os recibos vêm em nome deles, não em meu — disse ele, com um sorriso malandro.
— Então, tem de ir à Junta de Freguesia com o testemunho de duas pessoas ou de duas casas comerciais que comprovem que o senhor vive onde vive — disse a mulher.
— Portanto, para eu fazer a prova de que sou de maioridade, não chega eu trazer a minha pessoa comigo e trazer o meu B.I. Tenho de trazer também o Cartão de Estudante, Cartão de Contribuinte, que vocês já tiveram na mão e do qual têm todos os elementos, e, ainda, tenho de ir arranjar duas testemunhas, ir com elas à Junta de Freguesia, de modo a que esta me passe uma declaração a dizer que eu vivo onde vivo, e com essa declaração mais o B.I e mais o Cartão de Contribuinte e mais o Cartão de Estudante e mais a minha pessoa venho aqui novamente e mostro-vos tudo. Certo? — resumiu o jovem.
— Exactamente — anuiu ela.
— Não é mais nada? Veja lá! Não terei de ir ao notário ou à conservatória ou à secretaria da faculdade, ou à polícia? — perguntou ele.
— Há vários anos que é assim. São ordens do Banco de Portugal — finalizou a funcionária.
O rapaz, visivelmente maldisposto, desejou um bom dia aos presentes e foi, presumo eu, arranjar modo de provar que tem mais de dezoito anos.
Eu fiquei a pensar: rapaz ingrato. Não sabe a sorte que tem. Não sabe agradecer o facto de viver no tempo histórico do simplex socrático. É verdade que lhe pediram quatro documentos para provar o que um deles sozinho provava, mas, de outro ponto de vista, ele deveria ver que não lhe pediram a certidão de nascimento, não lhe pediram o registo criminal, não lhe pediram o certificado de robustez física, não lhe pediram análises ao sangue. Os jovens de hoje acham que é chegar e andar. Não é assim. Calma! Se não sabe do cartão de contribuinte, vai às Finanças pedir outro, e fica com entretenimento para o dia inteiro. Se precisa de testemunhas e de um documento da Junta de Freguesia, aproveita a circunstância e desenvolve o convívio social e, de seguida, aprofunda o conhecimento das instituições autárquicas.
Por outro lado, o jovem devia dar graças aos deuses por termos o Banco de Portugal que temos. Se para se provar a maioridade há esta exigência, este rigor, esta absoluta ausência de facilitismo, imagine-se a exigência, o rigor e o controlo que o Banco de Portugal não terá com a fiscalização dos bancos e das suas operações. Deve ser um rigor! Deve ser uma exigência!
Imagino como os banqueiros, ao longo destes anos, devem ter temido a fiscalização do Banco de Portugal!
É pena é que o rapaz não valorize nada disto.

Às quartas

Outono

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados. dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.

Russell Edson
(Trad.: José Alberto Oliveira)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Registos do fim-de-semana

Semana de pânico
— Dívida externa cresce assustadoramente. Dívidas às farmácias ultrapassam os 1.000 milhões. Ameaça de ruptura financeira volta a colocar-se. Fantasma do FMI agiganta-se —

'Nem pensem que me demito'
— PGR foi objecto de duras críticas no Conselho Superior da Magistratura, vê-se obrigado a substituir o seu vice, que estava ilegal, e na 3.ª feira vai ser alvo de uma denúncia no Parlamento por parte de um conselheiro —
Sol (17/9/10)

Mercados financeiros mostram novo cartão vermelho a Portugal
— Juros da dívida disparam para seis por cento. Para Espanha descem —

Idosos mais carenciados deixam de ter medicamentos grátis

Contratos de trabalhadores a recibo verde estão a disparar nas câmaras municipais
Público (17/9/10)

O 'melhor' aluno do país entrou na faculdade sem terminar o liceu
— Programa Novas Oportunidades pode ser usado como 'via verde' para facilitar entrada no superior

Cândida de Almeida exige voto de confiança

Estado já perdeu 459 médicos em 2010
Expresso (18/9/10)

Não é desta que as turmas ficam mais pequenas
— Projectos de lei do PCP e do BE não vão conseguir passar na Assembleia da República —
Público (18/9/10)

O oásis socrático está a desmoronar-se e a semana passada foi uma semana de pânico, revelam todos os jornais. Sócrates, como sempre, desmente, porque, lamentavelmente para todos nós, há muito que ele trocou as funções de primeiro-ministro pelas funções de primeiro-irresponsável. Mas Sócrates não desmente, porque não pode, o aumento da despesa pública, da dívida pública e do endividamento externo. E o constante aumento dos juros que nos cobram pelo financiamento da nossa dívida. Todavia, esses são os mesmos juros que, enquanto para nós sobem, para Espanha descem.

PGR não se demite. Em Portugal é assim: ninguém se demite de nada, os próprios nunca conseguem encontrar um motivo que os leve a tomar a decisão de se demitirem. Por maiores que tenham sido as barbaridades cometidas, as ilegalidades praticadas, a incompetência demonstrada, nada serve para que alguém se demita. O rol é imenso, mas basta recordar casos recentes: Sócrates, Lurdes Rodrigues, Isaltino de Morais, Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Gilberto Madaíl. Gente famosa que tem em comum a qualidade de se manter agarrada ao poder aconteça o que acontecer. Pinto Monteiro passou a integrar o grupo.

Para as Novas Oportunidades e em força! Para quem não quer ter a maçada de concluir o 12.º ano; para quem não quer ter de passar pelo aborrecimento de fazer 4 exames nacionais (dois no 11.º e dois no 12.º anos); para quem não quer a chatice de cumprir 12 anos de escolaridade, quando pode reduzir a coisa a metade; para quem não quer ter a ralação de fazer médias entre as classificações do 12º. ano e as classificações dos exames nacionais, as Novas Oportunidades são o caminho a seguir. Tudo legal, tudo certificado, no problem. Todos para as Novas Oportunidades e em força!

Recorrentemente, PS e PSD (aos quais se juntou agora o CDS) mostram ser, independentemente dos arrufos mediáticos e até de alguma incomodativa histeria, dois partidos siameses, duas faces da mesma moeda. De substantivo, nada distingue um do outro.
Votando contra (PS) ou abstendo-se (PSD), ambos vão impedir que uma medida fundamental no combate ao insucesso escolar se venha a concretizar: a redução do número máximo de alunos por turma. É a política sem escrúpulos.

domingo, 19 de setembro de 2010

Pensamentos de domingo

«Cada frase do adulador é composta de um sujeito, de um predicado e de um cumprimento.»
Georges Clemenceau

«O caminho para cima e o caminho para baixo são um único caminho.»
Heraclito

«A estupidez coloca-se na primeira fila para ser vista; a inteligência coloca-se na rectaguarda para ver.»
Bertrand Russell
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Stefano Battaglia e Michele Rabbia

sábado, 18 de setembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

A morte, segundo Schopenhauer

Para Arthur Schopenhauer, não há motivo para sentir ansiedade relativamente à morte. Isto porque a morte é a aspiração e o objectivo supremo da vida. É uma espécie de realização suprema!
A verdade é que Schopenhauer tinha ideias interessantes sobre a morte. Uma das coisas que quis dizer foi que a vida é um processo constante de morte. Se pensarmos bem, o passado é um simples repositório da morte, uma série de acontecimentos que já não existem — que desapareceram para sempre, irrecuperáveis, mortos como pregos.
Não obstante, diz Schopenhauer, agarramo-nos à vida porque temos um "desejo de viver" desvirtuado, que — contrariamente aos nossos melhores interesses — nos impede de abraçarmos o nosso verdadeiro destino, a morte.
Um exemplo:
Um italiano, um francês e um americano estão prestes a ser executados. Dizem-lhes que podem comer o que quiserem na sua última refeição.
Tony replica:
— Uma bela tigela de linguini com molho de amêijoas.
Come o seu prato de massa e é executado.
Segue-se Pierre.
— Eu gostaria de uma bela tigela de caldeirada provençal.
Saboreia cada colherada e depois é executado.
Por fim, chega a vez de Bill. Ele pensa durante alguns instantes e depois diz:
— Eu quero uma bela taça de morangos frescos.
— Morangos? — pergunta o guarda. — Não é a época deles.
— Não há problema. eu espero.
Verdade seja dita, Schopenhauer superou-se com um factor de depressão ainda maior. Disse que a morte é um alívio bem-vindo da vida. Citou lorde Byron como seu aliado no desprezo dos escassos prazeres da vida:
Conta as alegrias que as tuas horas viram,
Conta os dias livres de angústia,
E compreende que, o que quer que tenhas sido,
O melhor é não seres.
Num excerto, Schopenhauer foi ao ponto de concluir que, tendo em conta todos os desgostos da vida, melhor seria nunca ter existido!
Os dois que se seguem também pensam de modo idêntico:
Sam e Joe, dois velhotes, estavam a conversar num banco de jardim.
Oy. Toda a minha tive problemas atrás de problemas — disse Sam. — Um negócio que foi à falência, uma mulher doente, um filho ladrão. Por vezes, penso que estaria melhor morto.
Joe: Percebo-te perfeitamente, Sam.
Sam: Melhor ainda, quem me dera nunca ter existido.
Joe: Sim, mas quem tem essa sorte? Talvez uma pessoa em dez mil?

Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.57-61 (adaptado).

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As exequíveis metas do Governo

Depois de ter ouvido a comunicação da ministra da Educação, dirigida ao país dos pequeninos, ouvi as metas definidas pelo Governo para o sucesso educativo, até ao ano 2015:
— menos 5,3% de retenções, no ensino secundário; menos 3,8%, no 3.º ciclo; menos 2,5%, no 2.º ciclo; e menos 1,4%, no 1.º ciclo;
— mais 4% de positivas nos resultados dos exames nacionais de Português e de Matemática, do 9.º ano;
— menos de 1% de abandono escolar aos 14 anos, menos de 2% aos 15 anos e menos de 4% aos 16 anos.
Seguidamente ouvi o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e de Escolas Públicas — o nome da associação é catita: comprido, como convém, enfadonho, burocrático; na linha, aliás, dos nomes dos nossos estabelecimentos de ensino (Escola Secundária Fulaninho de Tal, com 3.º ciclo do ensino básico; Escola Secundária com 3.º Ciclo do Ensino Básico de Vila Nova de Cima; Agrupamento de Escolas do Baixo Lever e Arrudas do Meio, e outras do género). Ouvida a ministra e o presidente da associação, ainda ouvi uma aparentemente dinâmica directora de uma mais que provável dinâmica escola.
Consonância total: «As metas são exequíveis» disse o presidente da associação; «As metas são alcançáveis e a senhora ministra nunca falou em facilitismos, portanto não será por essa via que lá chegaremos!» disse a dinâmica directora, no final da reunião dos directores com Isabel Alçada.

A primeira coisa a reconhecer é que sintonias destas não são fáceis de alcançar, em particular, em matérias tão sensíveis e tão numéricas. Deste ponto de vista, as coisas pareciam ir bem encaminhadas. Todavia, o presidente da associação acrescentou duas observações que me inquietaram.
Primeira observação: «Para serem atingidas estas metas deveriam ser simplificados os programas do ensino básico, já que muitas vezes as matérias cruzam-se entre disciplinas e os alunos aprendem coisas sem utilidade». Abstraindo-nos da fundamentação um pouco tosca, vemos que o presidente da associação toca numa questão fundamental (ainda que toque por defeito, porque o problema não se circunscreve ao ensino básico): a revisão dos programas. Uma revisão, a sério, de todos os programas e, já agora, uma revisão, a sério, da estrutura curricular. Uma revisão que faça uma limpeza da imensa tralha programática que prolifera em quase todas as áreas e que faça uma efectiva redução do número de disciplinas que constituem o monstruoso currículo do 2.º e 3.º ciclos.
Pena é que estes directores não se tivessem batido por isto, durante os quase cinco anos de mandato da ministra anterior, em lugar de terem sido, com raras excepções, tão diligentes na concretização das barbaridades legislativas de Lurdes Rodrigues. Agora que pressentem que lhes serão pedidas responsabilidades pelas anunciadas metas, apressam-se a dizer que sim, mas que, primeiro, é necessário criar condições. Para a avaliação do desempenho dos outros professores (que a deles, recorde-se, não se realizou — o desempenho dos directores não foi avaliado, o que houve foi uma vergonhosa classificação do currículo, e nada mais) não reclamaram que era necessário, primeiro, criar condições. Da parte da maioria deles, nem sequer isso se ouviu.

A segunda observação, do presidente da associação, que me deixou inquieto foi: «É necessária uma verdadeira política de formação contínua de professores. Nenhuma actividade pode atingir metas e objectivos sem uma política de formação contínua. É preciso formação em muitas áreas.»
Há indivíduos que têm sono profundo, mas que acordam quando a água fria lhes chega aos pés. Falta formação?! Confesso admiração pelo achado. Já agora, e apenas por uma questão de curiosidade: na sua escola, sr. presidente da associação, os professores que têm exercido e que vão exercer as funções de avaliadores têm formação para o fazer? Não têm, pois não? Não. Denunciou isso publicamente? Combateu contra isso publicamente? Enquanto presidente dessa associação, já a mobilizou para contestar publicamente a vergonha, a farsa, a fraude que é a avaliação do desempenho que tem sido feita e vai continuar a fazer-se? Considera o sr. presidente que é possível avaliar professores com seriedade, rigor e justiça sem que haja uma formação séria, de média e longa duração, dos avaliadores, conforme o determinou o Conselho Científico para a Avaliação dos Professores (que, curiosamente, o fez quando era presidido pelo, agora, secretário de Estado da Educação)?
O sr. presidente da associação e quem o senhor representa têm andado onde e a fazer o quê? Como é que o senhor não se indigna, não se revolta e pactua com o escândalo que é a (pseudo) avaliação do desempenho docente?

Regressando às metas do Governo para o sucesso educativo, temos, então, de perguntar ao sr. presidente da associação: se a alteração dos programas e dos currículos está por fazer e a formação, a sério, leva anos a realizar, e se considera, como diz, que se trata de condições para que os objectivos governamentais sejam alcançados, como é que as metas são exequíveis para 2015? Ou as metas são exequíveis sem nenhuma daquelas condições? Todavia, se são exequíveis sem as tais condições, por que razão já não foram alcançadas? O que é que há de novo para que estas metas sejam exequíveis, a partir de agora?

Nota final. A minha concepção de Escola e de Educação está muito longe deste snob paradigma que confunde um espaço educativo com uma fábrica de porcas e parafusos, que gere a Educação com uma folha de Excel, que acredita nas «evidências» como sustentáculo de uma avaliação objectiva, que reduz a didáctica ao didactismo dos quadros interactivos e dos Magalhães, que descobriu no desenvolvimento tecnológico a essência e o sentido da vida.
Todos os anos, as minhas metas, como professor, e as metas dos meus alunos são sempre, e só podem ser, de 0% de insucesso. Não tenho, nenhum professor tem, metas de insucesso de 10, 15 ou 20%. As nossas metas são sempre de zero por cento. É para isso que todos trabalhamos, é para isso que todos temos a obrigação profissional e ética de trabalhar. Por vezes conseguimos atingir o objectivo do sucesso total, outras vezes não conseguimos. Por vezes ficamos satisfeitos, nós e os alunos, porque conseguimos; outras vezes ficamos insatisfeitos, nós e os alunos, porque não conseguimos. Por vezes ficamos perto, por vezes ficamos longe, mas a energia e o empenhamento com que partimos são sempre os mesmos, só podem ser sempre os mesmos. Não tenho, nem nunca terei, outro modo de trabalhar.

O insucesso não aumenta nem diminui só porque há uma ministra ou um governo que se lembram de decretar que o insucesso vai ser no máximo x e porque há uns directores que acham que o x é exequível. Nós, professores, não fabricamos máquinas, nem moldes, nem alicates, de modo a podermos dizer que no próximo ano vamos fabricar mais 3 ou 4% do que no ano anterior. Nós trabalhamos com pessoas, com crianças e jovens, que têm uma história pessoal única, que têm características pessoais únicas, que não são susceptíveis de serem introduzidas em frezadoras ou em rectificadoras ou em limadoras.
As metas educacionais não são metas de produção, são metas de formação. Nós, professores, não produzimos em série, formamos pessoas. Qualquer estatística acima de 0% de insucesso é má, porque representa, no mínimo, o insucesso de uma pessoa. Naquilo que cabe à escola e a cada professor individualmente, a meta é, sempre foi e sempre será, de zero por cento.
Cumpra o Governo a parte que lhe cabe que dará, certamente, um contributo muito significativo para a diminuição das taxas de insucesso e de abandono escolar. Pare o Governo de trabalhar para a fotografia, para o vídeo ou para o microfone e dedique-se a trabalhar com seriedade para o país e para os portugueses.
Cumpra cada um a parte que lhe compete que, se assim for, o sucesso dos nossos alunos será elevado, seguramente.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A ministra falou aos alunos



Ouvi, com atenção e com paciência, esta comunicação que a ministra da Educação dirigiu aos alunos, através do YouTube. O conteúdo e a forma desta comunicação não são surpreendentes. O conteúdo é um rol de vulgaridades, a forma é um hino à infantilização do auditório.
Não sei quem teve a ideia — provavelmente Sócrates, que vive da imagem e para a imagem — , mas quem a teve e quem a executou revelam bem a enorme ignorância que grassa no Governo acerca da realidade escolar e acerca do que é e do que deve ser uma escola.
Isabel Alçada ainda não deu conta de que ser ministra da Educação não é o mesmo que escrever e contar histórias a crianças, como ainda não se apercebeu de que as centenas de estabelecimentos de ensino existentes no país não são todas elas jardins de infância e infantários. Consumir cinco minutos de vídeo para se apresentar como uma figura caricata que se agita e saltita na cadeira, que imita os sorrisos, os esgares e a voz de quem conta uma história aos netos indicia uma extraordinária impreparação para o cargo — infantilizar os alunos das nossas escolas, para além de ridículo, é improcedente e nefasto. E pedagogicamente é arcaico e incompetente.
A seguir a uma ministra técnica e politicamente incapaz, segue-se uma ministra lunática, que vive num mundo de fadas.
Não sei se a Educação, em Portugal, sobreviverá a tanta malfeitoria.

Às quartas

Exílio

Em silêncio
a canoa sobrecarregada deixa as nossas costas

Mas quem são estes soldados de camuflado,
Estas nuvens que irão chover em terras estranhas?

A noite está a perder os seus tesouros
O futuro parece um mito
Urdido num tear manejado por mãos indolentes.

Mas talvez nem tudo seja mau para nós
Como da porta de uma cabana a mil quilómetros de distância
A mão esquálida de uma criança cumprimenta
Os dedos compridos e ossudos da chuva.

Mbella Sonne Dipoko
(Trad.: José Alberto Oliveira)

Protesto dos professores contratados e desempregados

O protesto saiu à rua no passado dia 13, em frente ao ME, na 5 de Outubro.
(Informação enviada pelo colega Paulo Ambrósio)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Registos do fim-de-semana

Portugal abaixo da média
Rankings da OCDE mostram que país investe pouco na Educação —

Cândida Almeida põe lugar à disposição
— Magistrados do Freeport pedem para sair —

Ex-provedor que promoveu Bibi já foi à festa da Casa Pia

Estradas de Portugal em espiral de endividamento

Defesa faz ajuste directo ilegal

Autarcas ameaçam 'manif' contra Alçada
— Autarquias acusam Governo de fechar escolas sem dar razões —
Sol (10/9/10)

Crédito externo mais difícil preocupa Banco de Portugal

Conselho Superior do Ministério Público 'repreende' procurador-geral da República
Público (11/9/10)

FMI pode intervir, admitem economistas e BdP

Finanças põem repartições à venda
— O Estado vende cem imóveis... ao próprio Estado —
Expresso (11/9/10)

Nos últimos dez anos, Portugal foi o único país da OCDE que desinvestiu na Educação não-superior. Deste recorde Sócrates não fala.
Continuamos em último lugar na formação: apenas 28% dos portugueses têm como qualificação mínima o 12.º ano. Na OCDE, a média é de 71%.
Mas o problema está a ser rapidamente resolvido: o Governo já determinou o fim do Ensino Recorrente, que tinha a chatice de ter uma exigência aproximada ao do ensino regular e uma chatice ainda maior que era ter a mesma duração do ensino regular, e passa a existir apenas a opção das famigeradas Novas Oportunidades, que, como se tem podido observar, é uma verdadeira máquina de passar diplomas. A exigência é do nível que se sabe e tem a extraordinária virtude de consumir metade do tempo. É rápido, é barato e... não dá milhões, mas dá milhares de diplomas de equivalência ao 9.º e ao 12.º anos.
Rapidamente, as nossas médias alcançarão e, rapidamente também, ultrapassarão as médias da OCDE, dos Estados Unidos e do Japão. E a Finlândia que se cuide...
Do mesmo modo que resolveu o problema da sua licenciatura, Sócrates resolve agora o problema da falta de formação em Portugal: rapidamente e facilmente, ou seja, «à Sócrates». O problema é que, a prazo, tudo isto se paga: a Universidade Independente, onde Sócrates tirou a licenciatura, já foi mandada encerrar (e não o foi por boas práticas...) e as Novas Oportunidades também serão mandadas encerrar, e ficarão na história do Ensino em Portugal como um vergonhoso embuste político.
O resto das notícias não destoam: o procurador-geral da República é repreendido pelo Conselho Superior do Ministério Público, a procuradora-adjunta demite-se, os magistrados do Freeport saem da Procuradoria, o processo Casa Pia é a vergonha que se vê, o crédito externo está a atingir um nível insuportável, o FMI ronda-nos a porta, e etc., etc., etc.
É o oásis socratino no seu melhor.

domingo, 12 de setembro de 2010

Pensamentos de domingo

«A vida está cheia de uma infinidade de absurdos que nem sequer precisam de parecer verosímeis porque são verdadeiros.»
Luigi Pirandello

«Homens de acção [são homens] cujos pensamentos estão demasiado absorvidos pelo trabalho quotidiano para verem algo além disso.»
Pearl Buck

«O tédio é uma invenção dos preguiçosos.»
Ugo Ojetti
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Stefano Bollani

sábado, 11 de setembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

Acerca do problema das imensas possibilidades que a vida nos coloca

«Para Kierkegaard, o ponto mais intenso da ansiedade e do desespero humanos [...] vai e vem. Algumas pessoas sentem-se completamente avassaladas com demasiadas possibilidades: os nossos seres limitados no tempo não conseguem lidar com as opções ilimitadas que se nos apresentam nas nossas vidas quotidianas e nas nossas fantasias. Tão pouco tempo, tantas coisas que eu podia fazer.
Prestemos atenção a uma ansiosa hesitação mortal perante demasiadas possibilidades:
Alguma vez beijarei tão bem como o Brad Pitt? Deveria abandonar o meu escritório de advocacia e tentar a sorte como artista de rua? Que devo fazer com a minha vida? Deverei soltar a mulher que existe dentro de mim? E o meu Rambo interior?
Deverei tentar ser simultaneamente uma supermãe e administrar uma empresa de construção civil? Deverei ter um caso com o carteiro e colocar em risco a minha vida familiar feliz? Ou deverei negar a mim mesma um caso e ir para o túmulo sem ter vivido essa experiência?
Atrevo-me a comer um pêssego? Um chocolate Mars? Um cogumelo mágico?
Se tivesse uma quantidade infinita de tempo, poderia tentar um número infinito destas opções. Mas há algo na morte que põe cobro às minhas possibilidades pessoais. Como tenho uma vida limitada pelo tempo, não quero desperdiçar 40 anos a tentar beijar tão bem como o Brad Pitt. OU, pior ainda, indeciso se devo tentar beijar tão bem como o Brad Pitt. Porque enquanto estou indeciso o relógio não pára. Tique, taque, tique, taque.
Foram precisamente estes dilemas que levaram os especialistas de marketing da Nike Corporation, verdadeiros existencialistas modernos, a dar um salto de fé que se transformou numa imagem de marca: Just Do It.
Porém, os tipos da Nike depararam-se com algumas limitações culturais em África. Filmaram um anúncio de ténis de corrida no Quénia com homens da tribo dos Samburu. A câmara foca um desses homens em grande plano a entoar algumas palavras em maa, a sua língua nativa, no momento em que o slogan "Just Do IT" aparece no ecrã. Quando o anúncio começou a ser transmitido na televisão americana, um antropólogo da Universidade de Cincinnati reparou que o que o fulano estava a dizer era:"Não quero estes! Quero sapatos grandes!"
Um embaraçado porta-voz da Nike admitiu que tinham tido dificuldade em encontrar um equivalente em maa para "Just Do It", por isso tinham gravado o anúncio com os homens da tribo a dizer o que quisessem.
[...] Do ponto de vista Kierkegaardiano, [aquele] homem é um bom exemplo de alguém que não hesita relativamente às suas opções.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.46-47.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Fragmenti veneris diei

«O rapaz sentou-se ao seu lado, na parte de trás. Epifanio sentou-se ao volante. Quando deixaram as ruas de terra batida de Villaviciosa e o carro rodava pelo deserto, o chefe da polícia perguntou-lhe como se chamava ele. Olegario Cura Expósito, respondeu o rapaz. Olegario Cura Expósito, repetiu Negrete, olhando para as estrelas, curioso nome. Durante algum tempo ficaram em silêncio. Epifanio tentou sintonizar uma emissora de Santa Teresa mas não conseguiu e desligou o rádio. Através da janela o chefe da polícia avistou, a muitos quilómetros de distância, o brilho de um raio. Naquele momento o carro deu um solavanco e Epifanio travou e saiu para ver o que é que ele tinha atropelado. O chefe da polícia viu-o desaparecer na estrada e depois viu a luz da lanterna de Epifanio. Abriu a janela e perguntou-lhe o que é que se passava. Ouviram um tiro. O chefe abriu a porta e baixou-se. Deu uns quantos passos para desentorpecer as pernas, até que a figura de Epifanio apareceu sem pressas. Matei um lobo, disse ele. Vamos vê-lo, disse o chefe da polícia, e os dois voltaram a penetrar na escuridão. Na estrada não havia sinal de faróis de qualquer carro. O ar era seco embora às vezes viessem rajadas de vento salgado, como se antes de se estender no deserto esse ar tivesse limpado a superfície de uma salina. O rapaz olhou para o tabliê iluminado do carro e levou as mãos à cara. A alguns metros dali o chefe da polícia ordenou a Epifanio que lhe passasse a lanterna e focou o corpo do animal estendido na estrada. Não é um lobo, pá, disse o chefe da polícia. Ah, não? Olha para o pêlo dele, o do lobo é mais luzidio, mais brilhante, além de que não são tão parvos que se deixem atropelar por um carro no meio de uma estrada deserta. Vamos lá ver, vamos medi-lo, segura na lanterna. Epifanio focou a luz no animal enquanto o chefe da polícia o esticava e procedia à medição a olho. O coiote, disse, mede de setenta a noventa centímetros, contando com a cabeça, quantos dirás tu que este mede? Uns oitenta?, disse Epifanio. Correcto, disse o chefe da polícia. E acrescentou: o coiote pesa entre os dez e os dezasseis quilos. Passa-me a lanterna e levanta-o, não te vai morder. Epifanio pegou no animal morto ao colo. Quanto achas tu que pesa? Pois entre doze e quinze quilos, respondeu Epifanio, como um coiote. É mesmo um coitoe, meu parvo, disse o chefe da polícia. Focaram os olhos do animal com a luz. Talvez estivesse cego e por isso não me tenha visto, disse Epifanio. Não, não estava cego, disse o chefe da polícia enquanto observava os grandes olhos mortos do coiote. Depois deixaram o animal ao lado da estrada e voltaram para o carro. Epifanio tentou sintonizar outra vez uma emissora de Santa Teresa. Só ouviu ruído de fundo e desligou-a. Pensou que o coiote que havia atropelado seria uma fêmea e que andaria à procura de um lugar seguro para parir. Por isso não me viu, pensou, mas a explicação não lhe pareceu satisfatória. Quando, em El Altillo, apareceram as primeiras luzes de Santa Teresa, o chefe da polícia quebrou o silêncio em que tinham mergulhado os três. Olegario Cura Expósito, chamou. Sim, senhor, respondeu o rapaz. E os teus amigos como te chamam? Lalo, disse o rapaz. Lalo? Sim, senhor. Ouviste, Epifanio? Ouvi, disse Epifanio, que não conseguia deixar de pensar no coiote. Lalo Cura?, perguntou o chefe da polícia. Sim, senhor, confirmou o rapaz. É uma brincadeira, não é? Não, senhor, é assim que me chamam os meus amigos, disse o rapaz. Ouviste Epifanio?, perguntou o chefe da polícia. Claro que sim, ouvi, disse Epifanio. Chama-se Lalo Cura, disse o chefe da polícia, e desatou a rir. Lalo Cura, La Locura, topas? Sim, sim, é claro, disse Epifanio, e também desatou a rir. Pouco depois os três puseram-se a rir.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 445-446.

A sociedade ideal

Há dias, o primeiro-ministro e a ministra da Educação foram inaugurar mais uma creche. Televisão, rádio, jornais, discursos. Como é usual, Sócrates referiu estarmos perante mais um momento histórico — não há assunto em que ele participe que não seja histórico, que não seja um recorde, que não seja qualquer coisa que, com ele, acontece pela primeira vez e que a ele se deve e que até ao fim das nossas vidas a ele deveremos ficar gratos.
O motivo deste orgulho, informou o chefe do Governo, para além da inauguração em si mesma, foi a circunstância do funcionamento da creche ser de segunda a domingo, com abertura às sete da manhã e encerramento à meia-noite. Para Sócrates e para Isabel Alçada, trata-se de um must. Abrir às 7h e fechar às 24h é sinónimo de progresso e é um indesmentível sinal de que somos um país moderno, um país de futuro. Poder deixar um filho na creche às sete da manhã e poder ir buscá-lo às sete da noite, ou às oito, ou às nove, ou quase no dia seguinte, é, para algumas cabeças, nas quais se conta a do primeiro-ministro, uma prova de que estamos a pisar o caminho certo.
Assim, dizem-nos, estão criadas condições para os casais poderem ter os filhos que quiserem e ao mesmo tempo poderem prosseguir as suas vidas profissionais. O futuro será assim, o futuro será o paraíso: pais descansados, pais realizados profissionalmente e filhos a crescerem saudável e prolongadamente em creches, depois em jardins de infância e depois ainda em escolas integradas, de preferência, inseridas em mega-agrupamentos.
Para que este quadro corresponda à noção integral que Sócrates tem de sociedade ideal, falta apenas imaginar que na vida destas crianças e destes pais existem vários Magalhães, múltipla tecnologia e muita energia renovável. É para isto que Sócrates trabalha todos os dias e, em cada passo que julga estar a dar nessa direcção, a felicidade estampa-se-lhe no rosto.
Para Sócrates não importa que famílias reais a sua sociedade ideal irá formar. Para Sócrates não interessa que estes pais trabalhem nove, dez ou doze horas por dia. Não há problema, porque os filhos podem estar na creche até à meia-noite. Para Sócrates não interessa que estes filhos só vejam os pais quando já estão, eles e os pais, mortos de cansaço e de sono. Não há problema, porque a creche só fecha à meia-noite. Para Sócrates não importa que os pais tenham de passar o fim-de-semana a arrumar a casa e a fazer compras — as compras que durante a semana não conseguem fazer — e que, para isso, tenham de ir pôr os filhos novamente à creche. Não há problema, porque a creche está aberta ao sábado e ao domingo. Para Sócrates não importa que a vida partilhada entre pais e filhos fique reduzida a migalhas, a pequenos estilhaços de tempo, porque haverá sempre uma creche ou um jardim de infância ou uma escola integrada que assegurará a guarda dos filhos.

Sócrates nunca perceberá que o caminho tem de ser o inverso, que temos de criar condições para que os pais tenham mais tempo para os filhos e para si próprios, que estejam mais tempo em casa e menos no trabalho. Sócrates nunca perceberá que é inaceitável que um profissional fique sujeito à escravatura das superiores necessidades da empresa, prescindindo de ter vida autónoma ou familiar, como hoje cada vez mais acontece. É este modelo de sociedade que a idolatrada actividade privada cada vez mais está a desenvolver, sem respeito por nada nem por ninguém, a não ser pelas denominadas «exigências do mercado».
Sócrates não só se conforma com esta realidade, como a enaltece e para ela trabalha. Sócrates não vê para além dos clichés da moda: leis do mercado, computadores, energias renováveis e gadgets tecnológicos.
O mundo dele começa e termina nestes clichés. Nem a meia dúzia de frases de Bernstein, que decorou e que recorrente e normalmente repete com grande despropósito, lhe servem para ver um pouco mais além.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Às quartas

Poema

Paisagem destruída, com
latas de conserva, as entradas das casas
vazias, o que há lá dentro? Aqui cheguei

à tarde, de comboio,
duas panelas atadas
ao saco de viagem. Agora deixei

para trás os sonhos que sopram
numa encruzilhada. E pó,
pavana fragmentada, néon

morto, jornais e carris,
este dia, que me resta agora,
um dia mais velho, mais afundado e morto?

Quem é que disse que a isto
se chama vida? Eu retiro-me
para outros tons de Azul.

Rolf Dieter Brinkmann
(Trad.: João Barrento)

Fanfarronices perigosas

António Vilarigues, militante do Partido Comunista, escreve regularmente no jornal Público. Apresenta-se como especialista em Sistemas de Comunicação e Informação. Normalmente não o leio, há muito que desisti, mas, na passada sexta-feira, li-o. Não resisti ao panegírico contido no seu artigo intitulado «A Festa do Avante! chateia...».

Esse artigo terminava com uma adivinha: o leitor deveria adivinhar o que naquele texto foi escrito por ele, Vilarigues, e o que foi escrito «(in)voluntariamente» (sic) por Miguel Esteves Cardoso (MEC). Para sabermos a solução da adivinha deveríamos consultar um artigo de MEC, publicado na revista Sábado, há cerca de três anos, ou consultar na net o blogue de Vilarigues, onde estão os dois textos reproduzidos, o de MEC e o dele próprio, e compará-los.

Vilarigues deve pensar que não temos mais nada para fazer, e, no meu caso, pensou bem, porque acabei por me dar a esse inútil e estúpido trabalho. Explico porquê.

Aquilo que Vilarigues pensa da Festa do Avante! não me interessa, já o sei antes de o ler, e o que Esteves Cardoso pensa já eu o sabia, porque tinha lido, na altura, o seu texto e não pretendia voltar a lê-lo (tenho, aliás, a vaga reminiscência de, à época, ter achado que a reportagem de MEC sobre a Festa do Avante! era típica de alguém que, nunca tendo militado num partido comunista, se considerava, todavia, possuído de uma superlativa intuição que lhe permitia, depois de duas passeatas pelo recinto da Festa, acreditar que tinha captado a essência espiritual da mesma e até a própria essência espiritual dos comunistas. E como, no momento em que escreveu a reportagem, MEC deveria estar particularmente eufórico e com o dia a correr-lhe de feição, considerou de bom tom dizer que tudo o que viu na Festa foi belo, foi cintilante, foi transparente, foi atraente, foi diferente e foi fantástico. Adiante).

Sendo assim, não querendo eu ler um nem reler outro, por que razão fui comparar os dois textos? Para não errar na atribuição da autoria desta frase inscrita no tal artigo do Público: «Os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria história.»

Se olharmos somente para a arrogância da frase e de quem a escreve (Vilarigues), encolhemos os ombros e seguimos em frente. Mas se olharmos para o que ela representa, já não podemos prosseguir sem antes lavrar protesto.

Acreditar que a história humana tem leis mais ou menos semelhantes às leis da Natureza e acreditar que Marx descobriu a ciência que explica essas leis é uma fé tão respeitável como qualquer outra, todavia, acreditar que «os comunistas são a razão da própria história», isso nem as testemunhas de Jeová, nem os mormons, nem os adeptos de Alá, nem os seguidores de Cristo se atrevem a dizer de si próprios.

Na verdade, não valeria a pena perdermos tempo a comentar esta frase se ela fosse apenas fanfarrona, presunçosa e ridícula, mas o problema é que ela revela o que de mais perigoso há na cabeça de alguns homens: convencerem-se de que são os descobridores e os portadores da Verdade; convencerem-se de que a posse dessa Verdade os coloca acima dos outros homens; convencerem-se de que a posse dessa Verdade lhes induz uma missão a cumprir, e que essa missão a cumprir consiste em conduzir os outros homens ao caminho da Verdade.

Isto é, o perigo reside em que alguns homens fiquem convencidos de que constituem a razão da história e de que isso lhes dá legitimidade para tudo.

Na história, todos os fanatismos, todos os totalitarismos e todos os moralismos partiram dessa premissa.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Regressar de férias

Se excluirmos algumas belezas naturais (as que ainda existem...), alguma boa gastronomia, algum bom vinho, alguns bons amigos e alguma boa gente, os motivos de satisfação de se regressar a Portugal não existem. O confronto com a actual realidade portuguesa é penoso.
Dos incêndios à política, é um rol de horrores que diante de nós desfila e que nos leva a perguntar: que nação é esta?

1. As estradas deste país mostram-nos, quilómetro após quilómetro, a criminosa e devastadora destruição da nossa floresta, nas nossas serras e nos campos. Em vários sítios, o cheiro a queimado ainda se faz sentir, apesar desses incêndios terem sido extintos há vários dias. É um panorama de morte, de desolação, de angústia.
É um panorama que nos faz recordar que, para além da impunidade criminal de que muitos tarados e assassinos da natureza usufruem, e da impunidade dos criminosos que por negligência provocam incêndios, também existe uma impunidade política que é usufruída há vários anos pelos responsáveis deste país, que nada fazem para impedir que se repita, anos após ano, o desenrolar deste filme macabro.
A esta impunidade geral, junta-se a insensibilidade e o pedantismo de um primeiro-ministro que, enquanto as chamas devoravam árvores e vegetação e ameaçavam casas e bens de centenas de pessoas, se mostrava particularmente preocupado em dizer às televisões que, afinal, neste ano, tinha ardido menos área do que no ano anterior. Infelizmente o pedantismo teve resposta, e, alguns dias depois, deflagraram novos e gigantescos incêndios que impediram que tivéssemos de ouvir novamente este tipo de aleivosias.

2. Mas as estradas deste país não nos mostram apenas esta catástrofe, mostram-nos uma outra: o esbanjamento de dinheiro e o enorme poder do lóbi das grandes empresas de construção. Há dias, alguém afirmou que quem governa Portugal são os lóbis, aos quais nenhum governo resiste. Ora, dois desses lóbis são, ninguém duvida, o das fábricas de cimento e o das empresas que fazem as obras públicas e inventam obras públicas para serem feitas.
A quantidade de auto-estradas construídas e em construção, de viadutos construídos e em construção, de obras de alargamento, de melhoramento, de aperfeiçoamento e de sei lá mais o quê é tal que quem circula em Portugal, e não é de cá, fica a pensar que está a circular num país produtor de petróleo ou, no mínimo, cheio de dinheiro. Sai daqui convencido de que não existe nem nunca existiu qualquer crise, e sai a magicar que devemos ter uma área territorial superior à da França ou Alemanha.

3. Se as estradas nos mostram o que mostram, a Educação mostra-nos que se aproveita o período de férias para, por um lado, fechar escolas e para, por outro lado, amontoar escolas, amontoar alunos, amontoar professores, amontoar funcionários, não com a finalidade de melhorar as condições do ensino e da aprendizagem, mas com a finalidade de emagrecer o orçamento. Sem rei nem roque, este processo tem-se desenvolvido com trapalhadas atrás de trapalhadas e cenas próprias de far west.
Todavia, o curioso mesmo é ver que o dinheiro que mingua na Educação sobra na construção de estradas e viadutos — algo de que estamos absolutamente carenciados, como é sabido.
Mas a Educação mostra-nos também que vamos iniciar mais um ano lectivo com mais um simulacro de avaliação de professores. Os avaliadores farão de conta que avaliam e os avaliados farão de conta que foram avaliados. A fiabilidade e a seriedade de tudo isto é coisa que pouco interessa ao Governo. Como sempre, o que lhe interessa é a publicidade da coisa, é a aparência da coisa. O que a coisa realmente é nunca interessou nem interessará a um governo chefiado pelo actual primeiro-ministro.

4. O primeiro-ministro que, em menos de um ano, é capaz de se opor veementemente e de defender veementemente o fim das deduções fiscais na Saúde e Educação.
Em Setembro do ano passado, a propósito da proposta do BE sobre o fim das deduções fiscais, Sócrates proclamou, com a maior convicção que se pode imaginar: «Isto é gravíssimo! É a primeira vez que um partido propõe que se eliminem todos os benefícios fiscais — não para os ricos, mas para a classe média!»; «Como é possível, de um momento para o outro, fazer o seguinte: acabamos com as deduções e obrigamos a classe média a pagar mais de mil milhões de euros! Eu acho isto absolutamente impraticável!».
Agora, ouvimos, estupefactos, o mesmo primeiro-ministro defender, com a mesma sincera e profunda convicção, exactamente o contrário: o fim das deduções fiscais na Saúde e Educação são a coisa mais justa do mundo.

5. Estupefacto também se fica, quando se toma conhecimento de que o famoso cheque-bebé de 200 euros, prometido nas eleições por Sócrates e anunciado como a primeira medida deste Governo, ainda não foi depositado em nome de nenhum dos muitos bebés já nascidos. Inquiridos sobre o facto, os responsáveis do Instituto que deveria concretizar a medida não dão resposta.

Lamentavelmente, estes são apenas alguns exemplos de muitas e diversas situações que fazem do regresso de férias um momento de desagradável confronto com a nossa realidade.
O fim de férias não é bom para ninguém, mas, em Portugal, começa a tornar-se um suplício.

Um abraço

Por diferentes razões, umas de ordem pessoal outras de ordem profissional, os meus colegas de blogue e de profissão (Jaime Ribeiro, João Pedro Costa e Margarida Correia) não puderam dar a este espaço o contributo regular que desejavam e esperavam poder dar. Deste modo, acharam por bem que os seus nomes fossem retirados da autoria do blogue.

Sei que estes meus colegas continuam a partilhar, na íntegra, as ideias e os objectivos com que este modesto projecto foi criado. Sei também que, quando a oportunidade surgir, prestarão a sua preciosa colaboração a este blogue, colaboração que por mim será sempre desejada e bem recebida, como eles bem sabem.

Agradeço aos três tudo aquilo que, na medida das suas disponibilidades, deram ao Estado da Educação e do Resto.

Para eles, o meu abraço.