quinta-feira, 31 de maio de 2012

Quinta da música - Franz Schubert

Trechos - Serge Latouche

«O nosso supercrescimento económico choca com os limites da finitude da biosfera. A capacidade regeneradora da Terra não acompanha a procura: o homem transforma os seus recursos em lixo mais rapidamente do que a natureza pode transformar este lixo em novos recursos.
Se tomarmos como índice do "peso" ambiental do nosso modo de vida a "pegada" ecológica deste na superfície da Terra ou no espaço bioprodutivo necessário, obtêm-se resultados insustentáveis, quer do ponto de vista da equidade, quer dos direitos de extracção de recursos da natureza, quer ainda do ponto de vista da capacidade de carga da biosfera. O espaço disponível na Terra é limitado. Totaliza 51 mil milhões de hectares. O espaço "bioprodutivo", ou seja, o espaço útil para a nossa produção, é apenas uma fracção do total: 12 mil milhões de hectares. Dividido pela população mundial actual, o resultado é aproximadamente 1,8 hectares por pessoa. Tendo em consideração as necessidades de materiais e energia, as superfícies necessárias para absorver detritos e desperdícios da produção e do consumo (para cada litro de gasolina queimada temos necessidade de cinco metros quadrados de floresta durante um ano para que seja absorvido o respectivo CO2!) e adicionando o impacto do habitat e das infra-estruturas necessárias, os investigadores do instituto californiano Redifining Progress e da World Wild Foundation (WWF) calcularam que o espaço bioprodutivo consumido por uma pessoa era em média 2,2 hectares. O ser humano já abandonou, portanto, o rumo dum modo de civilização duradouro, que teria de se limitar a 1,8 hectares — admitindo que a população actual se manteria estável. Em suma: vivemos já a crédito. Para lém disso, esta pegada média ignora disparidades enormes. Um cidadão dos Estados Unidos consome 9,6 hectares, um canadiano 7,2, um francês 5,26 e um italiano 3,8. [...] Cada americano consome cerca de 90 toneladas de materiais naturais diversos, um alemão 80 e um italiano 50 (137 kg por dia). Ou seja, a humanidade consome já cerca de 30% mais do que a capacidade de regeneração da biosfera.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Às quartas

VALA COMUM

Peço um poema à noite, um documento
Que me defenda de ser acusado
De ladrão de mistérios e comparsa
Dos crimes que se dão durante o sono.
Meia dúzia de versos de amargura,
Que digam que fiquei na minha lura
No mais lúcido e mísero abandono.

Mas rompe a madrugada da semente,
Abre o dia,
E eu condenado como toda a gente!
Mostrei o atestado, e não servia...

Miguel Torga

Um discurso sobre o nada

As afirmações do primeiro-ministro, esta tarde na Assembleia da República, são bem reveladoras do modo de estar na política da nossa elite governamental. Perante a enorme gravidade dos múltiplos factos conhecidos sobre actos de espionagem, sobre a promiscuidade entre interesses políticos, interesses de empresas privadas e os serviços de informações e sobre o comportamento do ministro Miguel Relvas, o primeiro-ministro fez, no Parlamento, o discurso sobre o nada: nada há a fazer relativamente ao apuramento de responsabilidades dos responsáveis máximos dos serviços de informações, nada há a fazer relativamente ao ministro Relvas, nada há a fazer de particularmente relevante, porque nada existe de particularmente relevante. 
Entretanto, as notícias vão saindo. Entretanto o que se vai conhecendo mostra que têm ocorrido coisas gravíssimas que ferem os mais elementares direitos constitucionalmente consagrados no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, e mostra uma rede — composta por espiões, ex-espiões, empresários e governantes — que desenvolvia actividade ilegal e/ou promíscua em roda livre. 
Passos Coelho confirma mais uma vez que não tem estatura política compatível com as suas responsabilidades de Estado.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema

Nacos

Canto III

112
O medo, neste século, já não é um produto artesanal.
Os aviões bombardeiros
— ou, em tempo de paz, as falências imprevistas —
impressionam pela tecnologia posta em acção.
Hoje, passa-se fome de modo bem mais moderno
do que no século XVIII, por exemplo.

113
No presente século passa-se fome frente
a certos alimentos caros, enquanto em séculos
anteriores passava-se fome diante de gastronomias
menos requintadas.
No fundo, há um conjunto de desgraçados
para os quais o fantástico desenvolvimento da culinária
não teve qualquer efeito prático.
114
A vida é isto: a lua está mais próxima
de alguns homens que treinam para astronautas 
que um prato quente da boca de outros homens.
É aquilo a que podemos chamar: distâncias
relativas. Por mim, não me queixo.
Estômago cheio, boas pernas, boa cabeça.

115
E claro que a quantidade de chá depende da chávena,
ou seja, os problemas são acontecimentos
de estimação para cada der vivo
— ninguém passa sem eles.
Veja-se o problema do trânsito nas grandes cidades:
por vezes parece que não chegaremos a casa
antes de os americanos irem outra vez à lua.
Mas no fundo é isto:
cada um é escolhido pelas suas preocupações.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Degradação

As práticas e os discursos insolentes de muitos dirigentes do futebol português já há muito que foram importados por vários dos nossos dirigentes políticos. De governos regionais a governos centrais, de deputados a responsáveis partidários pudemos encontrar, ao longo dos anos, pródigos exemplos desta realidade. Aliás, nos últimos seis anos de governação socialista, as intervenções públicas grosseiras e desrespeitosas tornaram-se recorrentes. 
Hoje temos novos intérpretes. Silva Carvalho, que já foi espião (o que dá aso a imaginar o estado pouco recomendável a que a nossa espionagem chegou) e que ultimamente tem vivido na antecâmera da política, ameaça, através da sua página no Facebook, socar quem divulgue a acusação da suas ilegalidades e crimes; Miguel Relvas, o ministro íntimo de Passos Coelho, ameaça um jornal e uma jornalista, se publicarem notícias sobre as suas inexplicáveis relações com a espionagem.
Para além de Carvalho e Relvas partilharem um semblante e uma postura corporal idênticos e a mesma aversão à liberdade de imprensa, parecem partilhar igualmente a mesma agilidade na utilização das novas tecnologias. O primeiro, já ex-espião, usando e abusando dos e-mails e sms para desenvolver actividade que lhe estava vedada; o segundo, como ministro, usando e abusando do telemóvel, para ameaçar um órgão de comunicação social, com a promessa de usar também a internet, para divulgar dados privados da vida de uma jornalista.
É ainda curioso registar o ar galifão com que alguns jornalistas têm discorrido acerca das pressões que os políticos sobre eles exercem. Contam que é normal ministros, deputados, dirigentes partidários e autarcas pegarem no telefone para praguejar e insultar jornalistas. Dizem que é natural assim ser, que faz parte do jogo da vida, e que não é jornalista quem não aguentar uma pressão. O que não pode acontecer, dizem eles, é haver pressões inaceitáveis.
Como leitor, eu estaria interessado em saber onde reside a fronteira entre uma pressão aceitável e uma pressão inaceitável. Segundo consegui compreender, praguejar e insultar fazem parte do cânone, ameaçar é que talvez já não faça. Digo talvez, porque, por exemplo, ameaçar que se coloca na internet o nome do parceiro ou parceira conjugal, para uns, ainda está dentro do normal, para outros, já não é normal. Isto é, se a relação conjugal for secreta, a ameaça de divulgação na internet é uma ameaça inaceitável, se a relação conjugal não for secreta, a ameaça de divulgação na internet já não é ameaça nenhuma é apenas uma pressão normal. 
Há políticos, espiões e jornalistas que reciprocamente se merecem.

domingo, 27 de maio de 2012

Toots Thielemans

Pensamentos de domingo

«Eu defendo os vossos interesses contra as vossas ideias.»
Edmund Burke

«Eu sou honesto, brutalmente honesto. E mesmo quando não sou honesto, pareço honesto.»
Lorde Thomson of Fleet

«Não são só as crianças que são despachadas com histórias da carochinha.»
Gothold Lessing
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos.

sábado, 26 de maio de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Uma história zen.

Num mosteiro japonês, no fim da Idade Média, vivia um velho monge que inspirava aos jovens monges uma espécie de terror respeitoso, pois nada parecia capaz de perturbar a sua serenidade. Se bem que estivesse sempre a repetir que não há nada de mal numa emoção — fosse ela qual fosse, desde que não nos deixássemos arrastar por ela —, mantinha-se calmo e inalterável. Ninguém conseguia irritá-lo, atemorizá-lo, nem inquietá-lo.
Uma madrugada de Inverno em que a noite ainda escurecia todos os corredores do mosteiro, os jovens monges juntaram-se silenciosamente no escuro. Nesse dia, de manhã cedo, o velho monge devia cumprir o ritual de levar a taça de chá até ao altar. 
Quando chegou o momento da sua passagem, os jovens monges saltaram bruscamente do escuro, como fantasmas, a urrar.
O ancião prosseguiu tranquilamente o seu caminho sem um passo em falso, sem um sobressalto. Um pouco mais longe, no corredor, encontrava-se uma pequena mesa. Pousou suavemente a taça de chá, cobriu-a com um bocado de seda para que não caíssem poeiras.
Depois apoiou-se numa parede e soltou um enorme grito de pavor.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Exames nacionais - apontamentos (3)

Defender a realização de exames nacionais a todas as disciplinas, no final de cada ciclo de estudos e no ano terminal de todas as disciplinas, com peso determinante para a aprovação do aluno, implica considerar que estas provas são particularmente fiáveis e credíveis. Ou melhor, implica considerar que através destas provas se avalia um aluno de modo mais fiável e credível do que através da avaliação que é feita pelos professores desse aluno no decurso de um ou mais anos lectivos. Caso contrário, não seria coerente propognar pela sua universalização e pelo seu carácter decisório.

A tese da superior fiabilidade dos exames pretende gerar na consciência individual dos alunos e dos pais e na consciência colectiva da população a ideia de que as classificações mais altas nos exames nacionais são necessariamente obtidas pelos melhores alunos, e de que os exames nacionais são a efectiva prova real que nos permite saber quem é verdadeiramente um bom aluno. Decorre daqui a convicção de que os exames nacionais mostram, de facto, quem está melhor capacitado para prosseguir estudos e quem merece efectivamente entrar no ensino superior.
Deste modo, um aluno que obtenha uma nota elevada num exame nacional é referido como um exemplo a seguir; um aluno que obtenha uma nota mediana é referido como um aluno mediano. Se este aluno obteve na classificação interna uma nota alta e no exame nacional uma nota significativamente mais baixa, infere-se imediatamente uma, duas ou três coisas: durante o ano, o professor avaliou mal o aluno; e/ou o professor preparou mal o aluno; e/ou o aluno é psicologicamente fraco, não aguenta o stress, e, por isso, não está preparado para a vida. O senso comum pensa assim e os alunos são induzidos a pensar e a sentir assim. Os teóricos que defendem o exame nacional como o arquétipo dos instrumentos de avaliação também é isto que dão a entender.
Contudo, a proposição que afirma que o exame nacional é o instrumento de avaliação mais fiável que existe é uma proposição falsa. Em abstracto, e do ponto de vista técnico, o exame nacional enferma de todas as deficiências de que uma prova sumativa realizada a nível de turma enferma, mas tem outras graves debilidades acrescidas, das quais se podem salientar:
i) o exame nacional é inevitavelmente um instrumento de avaliação desvinculado do processo de ensino-aprendizagem ocorrido em cada escola, em cada turma e em cada ano ou anos lectivos, o que tem, do ponto de vista avaliativo, várias consequências negativas que não podem ser ignoradas;
ii) como referi no texto da semana anterior, o exame nacional, com peso determinante para a aprovação,  é o único instrumento de avaliação cujas limitações e insuficiências são inultrapassáveis e as suas consequências são irreversíveis, para o aluno — enquanto que a multiplicidade de instrumentos de avaliação susceptíveis de utilização no decurso de um ano lectivo possibilita que as insuficiências e as limitações inerentes a cada instrumento de avaliação possam ser minimizadas, através da sua complementaridade, o exame nacional não permite essa possibilidade, se, repito, tiver uma ponderação decisiva na classificação final do aluno;
iii) um exame nacional decisório para a aprovação ou reprovação consente que, de forma potencialmente muito significativa, se imiscua no processo de avaliação um elemento completamente espúrio ao objecto dessa avaliação: o desequilíbrio emocional que a consciência do carácter decisivo da prova potencialmente gera. (Sobre o argumento que defende o valor alegadamente educativo deste desequilíbrio, falarei em texto posterior);
iv) o exame nacional tem inerente a si outra conhecida debilidade grave: a impossibilidade de serem ultrapassadas as grandes discrepâncias classificativas entre as centenas (ou milhares, depende da dimensão do país) de professores classificadores, cujas consequências não podem ser ignoradas e muito menos escondidas.

Estas são algumas das deficiências específicas de que os exames nacionais enfermam. Todavia, há um outro elemento singular que deve ser referido: estas provas pareceriam usufruir, a priori, de uma óbvia vantagem relativamente às provas realizadas a nível de turma ou escola. Esta vantagem consistiria no facto de serem provas elaboradas por professores especialmente dedicados a esta função. Contudo, nem esta presumida mais-valia é inteiramente confirmada pelos factos: basta lembrar as infindáveis polémicas e as inúmeras gafes técnicas que invariavelmente são suscitadas e detectadas na realização dos exames nacionais. Não deve haver um ano em que não se discuta se os exames foram demasiado fáceis ou demasiado difíceis, e não deve haver um ano em que não sejam detectados erros técnicos: perguntas mal ou deficientemente formuladas. Nem neste ponto, em que o rigor e a fiabilidade pareceriam garantidos, existe a confirmação que se esperaria.
Os exame nacionais não são um exemplo de rigor nem de fiabilidade, ao contrário do que alguns querem fazer crer. Os exames nacionais vivem de uma aparência de credibilidade que, de facto, não possuem.

Nos próximos textos, procurarei recordar alguns aspectos concretos relativos aos exames nacionais cuja relevância é, do meu ponto de vista, decisiva para se discordar do fundamentalismo que defende a universalização e o carácter decisório destas provas.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Quinta da música - Richard Strauss

Trechos - Serge Latouche

«Se não agirmos rápida e decididamente, é a morte por asfixia o que nos espera em breve. Em concordância com a razão geométrica que preside ao crescimento económico, o homem ocidental renunciou a toda a ponderação. Com um aumento do produto nacional bruto (PNB) per capita de 3,5% ao ano (progressão média em França  entre 1949 e 1959), chegamos a uma multiplicação por 31 num século e por 961 em dois séculos! Com uma taxa de crescimento de 10%, que é a da China actual, obtém-se uma multiplicação por 736 num século! Com uma taxa de crescimento de 3%, multiplica-se o PIB por 20 ao fim de um século, por 400 em dois e por 8000 em três! Se o crescimento provocasse automaticamente o bem-estar, deveríamos viver hoje num verdadeiro paraíso, começado em... Mas, pelo contrário, estamos ameaçados com o inferno.
Nestas condições, seria urgente redescobrir a sabedoria do caracol. Este não só nos ensina a lentidão necessária, mas dá-nos uma lição ainda mais indispensável. Como Ivan Illich nos explica, "O caracol constrói a arquitectura delicada da sua casca acrescentando espiras cada vez maiores uma a seguir à outra, mas depois pára bruscamente e dá início a enrolamentos que passam a ser decrescentes. É que uma única espira a mais daria à casca uma dimensão 16 vezes maior. Em vez de contribuir para o bem-estar do animal, este passaria a ficar sobrecarregado. Portanto, qualquer aumento da sua produtividade serviria apenas como paliativo para as dificuldades criadas pelo aumento da casca para além dos limites fixados pela sua finalidade. Ultrapassado o ponto limite do alargamento das espiras, os problemas do sobrecrescimento vão-se multiplicar em progressão geométrica, ao passo que a capacidade biológica do caracol não pode aumentar, quanto muito, senão em progressão aritmética. Este afastamento do caracol em relação à progressão geométrica, que, no entanto, abraçara durante algum tempo, aponta-nos o caminho para pensar uma sociedade do "decrescimento", se possível serena e convivial — o decrescimento não é uma inversão mecânica do crescimento, mas a construção duma sociedade autónoma, certamente mais sóbria e sobretudo mais equilibrada.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Às quartas

CANTO DO SILÊNCIO

repete à minha alma o canto do silêncio
tão doce como o sopro da brisa negra,
troca os suspiros por lágrimas e transe,
sob meu dorso desperta um desespero dolente
e olha pela minha vida, ó meu cantor!
porque aqui está sobre mim a noite, tomada de embriaguez,
de pálpebras ardidas, em meus sonhos entro.
desfolham-se de suspiros em tristezas,
portadoras do sudário dos meus dias.
possam das sombras os ritmos
acompanhar os sangrentos restos dos meus amores.
no poço da minha'lma gira o eco subtil
qual morte próxima vertida entre as pestanas.

Adib Mazhar
(Trad.: Aldalberto Alves)

Empreendedorismo

Soubemos há dias que começam a existir bares a vender copos de água da torneira a 50 cêntimos. Houve quem protestasse, houve quem insultasse, houve quem chamasse a polícia, houve quem ligasse para a ASAE. Do meu ponto de vista, não procederam bem. O comportamento correcto e adequado à circunstância deveria ter sido o elogio e o incentivo. Na verdade, vender copos de água da torneira é um exemplo de empreendedorismo, de inovação e de criatividade. Segundo as elites que nos governam, na política e na economia, é justamente no empreendedorismo, na inovação e na criatividade que temos de investir. Passos Coelho não se cansa de repetir que a crise e o desemprego são momentos de oportunidade. Ora, dar de beber a quem tem sede sem a respectiva retribuição é um arcaísmo, a juntar aos outros arcaísmos que uns maduros ineptos e inadaptados incomprensivelmente teimam em lembrar, como é, por exemplo, aquela coisa — para não chamar «coiso» — dos direitos adquiridos, ou aquela coisa de ser solidário, ou a outra coisa da igualdade, ou a coisa da solidariedade. O arcaísmo deve pois ser substituído pela oportunidade: quem quer beber água paga, não interessa a origem do líquido. Aliás, não se compreende a contestação: o princípio do utilizador-pagador já há muito que devia estar universalizado, não há razão para que ele fosse aplicado apenas às ex-SCUT. 
Deste modo, o acto de cobrar 50 cêntimos por um copo de água não deve ser visto como uma forma grosseira de ganhar dinheiro, até porque, provavelmente, é também uma intenção ecológica que está presente nessa cobrança: trata-se, no fundo, de uma taxa moderadora para travar o consumo excessivo de água da torneira.
Empreendedorismo, inovação e consciência ecológica num copo de água da torneira. De modo idêntico ao desemprego, a água é uma boa oportunidade.

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terça-feira, 22 de maio de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

Nacos

Canto III

68
Mas deixe-me dizer-lhe, caro Jean M,
se Deus existe, tem afinal uma educação
tão francesa e tão de guardanapo de linho
que nenhuma acção Dele
se torna aqui em baixo visível
— tal a delicadeza.
Mas se alguém tem poder,
para quê ser delicado?

69
Ao ar livre é mais difícil esquecermos Deus,
mas, de facto, poder e delicadeza
combinam apenas nos que têm tempo,
nos imortais.
Em nós, míseros humanos, no meio da pressa e do desespero
por vezes descansamos — e eis tudo.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Medo

Causar medo a uma criança para levá-la a comportar-se correctamente — ou o que se entende ser correctamente — é uma péssima estratégia educativa. Aliás, não é sequer uma estratégia educativa, é uma estratégia, mas não é educativa. Com essa forma de actuar, preserva-se a lei do mais forte sobre o mais fraco, preserva-se a prática de que o fim justifica os meios, alcança-se o objectivo imediato, mas não se educa nem se respeita a criança. Sobre isto estaremos todos mais ou menos de acordo. Como provavelmente estaremos de acordo se se disser que qualquer relacionamento entre pessoas adultas fundado no exercício do medo ou da ameaça é um relacionamento inadmissível. E certamente que ainda estaremos de acordo se estendermos esta rejeição à relação entre grupos de indivíduos também assente no temor e na intimidação.

Contudo, o que todos rejeitam a nível das relações privadas parece já não ser por todos rejeitado no que diz respeito à relação entre Estados. O que não deixa de ser curioso, porque, ao admitirmos que na relação entre Estados o medo ou a ameaça podem ser utilizados, estamos a aceitar que a nível da relação entre quem representa grandes grupos de pessoas (povos) se pratique aquilo que entre pequenos grupos e entre indivíduos consideramos inaceitável.

Ora, é isto que vergonhosamente está a acontecer na relação entre alguns Estados-membros da União Europeia e a Grécia, entre responsáveis políticos de alguns Estados e de algumas instituições europeias e o Estado/povo grego. As ameaças que têm sido dirigidas aos gregos, por parte de Merkel, por parte do seu ministro das Finanças, por parte de Durão Barroso e de outros dirigentes, são um comportamento que repugna e indigna. Através da chantagem, da ameaça e da propagação do medo, procuram condicionar a liberdade de voto dos eleitores gregos, nas próximas eleições. O protagonismo deste terrorismo psicológico é compartilhado também por vários órgãos de comunicação social de diferentes países. Sem independência, cativos dos interesses financeiros dos seus proprietários, jornais e televisões privadas abdicam das suas responsabilidades editoriais para, sem pudor, tentarem influenciar as decisões do povo grego. O poderoso mundo financeiro socorre-se de todos os meios para impedir que a liberdade se exerça.

Ver a Grécia como uma criança que pode e deve ser amedrontada é revelador da qualidade das elites que presentemente dominam muitos países da União Europeia.

Conferência: Grécia e Portugal


domingo, 20 de maio de 2012

Gotan Project

Pensamentos de domingo

«Com Deus falo espanhol, com as mulheres italiano, com os homens francês e com o meu cavalo alemão.»
Imperador Carlos V

«Ninguém está livre de dizer asneiras; o erro é fazê-lo depois de muita consideração.»
M. de Montaigne

«Deus deu-me o dinheiro.»
John D. Rockefeller
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos.

sábado, 19 de maio de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um conto indiano de origem búdica.

Conta-se o imenso espanto que atingiu o rei Asoka quando viu uma mulher fazer o Ganges subir para a sua nascente com um simples gesto. Espanto esse que chegou aos limites quando lhe explicaram que aquela mulher, já idosa, era uma prostituta muito conhecida da cidade de Pataliputra.
Chamou-a, falou-lhe durante muito tempo no meio do alarido das vozes de todos os sábios da corte que comentavam aquele acontecimento de monta. Uns citavam textos agrados, outros procuravam outros exemplos, outros ainda punham em dúvida a realidade do portento e falavam de alucinação.
A velha prostituta de Pataliputra reconheceu a realidade dos factos. Sim, disse ela, sou capaz de uma acção verdadeira quando o desejo. Tenho poder sobre as coisas. Posso arrancar árvores e fazê-las girar no ar, posso virar montanhas de pernas para o ar e com elas os habitantes.
Dirigindo-se ao rei de mão estendida, disse ainda:
— Posso mesmo levantar-te do teu trono, atirar-te ao ar, precipitar-te nos abismos.
O rei, agitado por frémitos de medo — pois tinha visto com os seus próprios olhos o Ganges subir para a nascente — disse à prostituta:
— Mas de onde vem esse poder? O que é que te permite tais acções verdadeiras?
— Conheci muitos homens — respondeu a prostituta de Pataliputra — soldados, camponeses, mendigos, ladrões e até príncipes. Mas não estabeleci nenhuma diferença entre eles. A todos, a despeito das suas condições muito diferentes, concedi os mesmos favores. Nunca manifestei servilismo nem desdém. É esse o segredo do meu poder.
Baixou a mão que estendia a Asoka e retirou-se. Os sábios calaram-se à sua passagem, agachados no chão, e o rei Asoka, que tinha fama de ser o melhor dos reis, pensava no longo caminho que ainda tinha de percorrer.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Exames nacionais - apontamentos (2)

Provavelmente não há nada que já não tenha sido dito a favor ou contra a realização de exames nacionais. A polémica, contudo, mantém-se e o(s) problema(s) persiste(m): devem realizar-se exames nacionais? Devem realizar-se exames nacionais a todas as disciplinas e no final de cada ciclo de estudos? Que peso devem ter os exames nacionais na avaliação global do aluno?
O facto desta discussão não terminar revela a complexidade e a dificuldade do problema. Por isso é muito difícil compreender o atrevimento com que alguns arrumam o assunto: i) exames nacionais, pois claro, a todas as disciplinas, no final de cada ciclo de estudos, no ano terminal de todas as disciplinas e com peso determinante para a aprovação do aluno; ii) exames nunca, em nenhuma circunstância.
O primeiro fundamentalismo («exames já e em força!») abarrota o discurso encomiasta com os substantivos «rigor» e «excelência», como se o termo «exame» fosse sinónimo de algum deles ou como se a realização de exames fosse uma sua causa; o segundo fundamentalismo («exames nunca!»), vendo nas provas de exame a encarnação do mal, defende a sua abolição independentemente das circunstâncias de cada sistema educativo e de cada país.
Neste momento, vivemos sob o signo do fundamentalismo dos exames. Quem ouviu e leu o que Nuno Crato tem dito e escrito sabe da sua devoção por estas provas nacionais. O nosso ministro propala a ideia da superior fiabilidade dos exames, da sua objectividade, da sua capacidade de promover a justiça avaliativa, de promover o rigor e a excelência e até de ser o veículo ideal para avaliar os professores. Para Nuno Crato, os exames praticamente só não resolvem o problema do défice.
É sobre este primeiro fundamentalismo e sobre a imagem de superior credibilidade dos exames, que eu considero falsa, que começarei esta série de apontamentos e terminá-la-ei com algumas observações sobre o segundo fundamentalismo.

Parto da seguinte base largamente consensualizada: não existem instrumentos de avaliação perfeitos — todos os instrumentos de avaliação têm limitações e insuficiências. Não existem instrumentos de avaliação totalmente objectivos nem totalmente fiáveis. Sobre isto, parece que estamos todos de acordo. Mas este reconhecimento tem consequências. A primeira, que é por todos aceite, é a de que as provas de exame nacional são necessariamente um instrumento de avaliação com limitações e insuficiências. A segunda, que estranhamente é ignorada por alguns, é que as provas de exame nacional são o único instrumento de avaliação cujas limitações e insuficiências são inultrapassáveis e as suas consequências são irreversíveis, para o aluno. 
Enquanto que a variedade de instrumentos de avaliação susceptível de utilização no decurso de um ano lectivo permite que as insuficiências e as limitações inerentes a cada instrumento de avaliação possam ser minimizadas, através da sua complementaridade, o exame nacional não tem essa possibilidade, se se apresentar como uma prova de peso determinante para a aprovação. Se se permitir que o exame nacional tenha, como vários defendem, uma ponderação decisiva na avaliação global do aluno, estamos a permitir que uma única prova, demonstradamente limitada e insuficiente, julgue e decida de forma irreversível.
Esta circunstância, só por si, deveria bastar para que existisse alguma cautela sempre que se fala em atribuir aos exames nacionais um peso determinante na avaliação.
Não se compreende que, sabendo-se as conclusões a que múltiplos estudos têm chegado e sabendo-se o que a experiência continuamente tem revelado, se procure passar para a opinião pública uma imagem de enorme credibilidade e excelsa fiabilidade dos exames nacionais. Essa imagem não é verdadeira.
No plano meramente teórico, os exames nacionais, pelas características de que inevitavelmente se revestem, são certamente dos instrumentos de avaliação mais limitados e pobres. Todos sabemos dos muitos e graves problemas que a realização de provas de exame nacional suscita. Da selecção e elaboração das perguntas à classificação das respostas, das questões pedagógicas às psicológicas, existe um enorme banco de dificuldades que até hoje a docimologia não resolveu. Fazer de conta que nada disto existe não é intelectualmente sério. Fazer o panegírico dos exames, não circunscrevendo a sua validade, não é propedêutico para a formação de uma verdadeira consciência social, que deve existir, sobre a importância (limitada) e o papel (limitado) dos exames nacionais.

(Continua na próxima semana)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Quinta da música - Edward Elgar

Trechos - Serge Latouche

«São necessários três ingredientes para que a sociedade de consumo possa prosseguir o seu circuito diabólico: a publicidade, que cria o desejo de consumir, o crédito, que lhe fornece os meios, e a obsolescência acelerada e programada dos produtos, que renova a sua necessidade. Estas três molas da sociedade do crescimento são autênticas "drogas".
A publicidade faz-nos desejar o que não possuímos e desprezar aquilo de que dispomos já. Ela cria e recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado. Segundo uma sondagem efectuada aos presidentes das maiores empresas americanas, 90% deles reconhecem que será impossível vender um novo produto sem uma campanha publicitária; 85% declaram que a publicidade persuade "frequentemente" as pessoas a adquirir coisas de que não têm necessidade; e 51% dizem que a publicidade persuade as pessoas a comprar coisas que, de facto, não desejam. Esqueçam os bens de primeira necessidade. Cada vez mais, a procura deixa de incidir em bens de grande utilidade, passando a sê-lo em bens de grande futilidade.
[...]
Por seu lado, o uso da moeda e do crédito, necessário para levar a consumir os que não dispõem de rendimento suficiente e para permitir aos empresários investir sem dispõem do capital necessário, é um poderoso "ditador" do crescimento no Norte, mas é-o também de maneira mais destruidora e mais trágica no Sul. Esta lógica diabólica do dinheiro que exige sempre mais dinheiro não é senão a lógica do capital. Estamos perante aquilo a que Giorgio Ruffolo chama muito adequadamente o "terrorismo do juro composto". Independentemente do nome com que o disfarcemos para o legitimar [...] trata-se sempre do lucro, motor da economia de mercado e do capitalismo ao longo de todas as suas mutações. Esta busca do lucro a qualquer preço faz-se graças à expansão do par produção-consumo e da redução dos custos. Os novos heróis do nosso tempo são os cost killers, estes gestores que as empresas multinacionais atraem a preço de ouro, oferecendo-lhes grandes quantidades de stock-options e indemnizações por rescisão. [...] Estes estrategos estão empenhados em transferir ao máximo os custos para o exterior, de modo a fazê-los recair sobre os empregados, os subcontratados, os países do Sul, os seus clientes, os Estados e os serviços públicos, as gerações futuras e sobretudo a natureza, transformada ao mesmo tempo em fornecedora de recursos e em caixote do lixo.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Às quartas

CELEBRAÇÃO OU BALBUCIO

Nada adormeceu nas águas. Tudo adormeceu.
E o possível e o impossível são um só rumor.
Implacável, finíssima  a calma permanece.
Nada requer a palavra. Só um balbucio
Que recomece o início e celebre o silêncio.
O que procuramos é a extrema intensidade
Na mais justa pronúncia, na mais firme
E que a voz se torne a lâmpada do aroma.
Nasceu já, nascerá na palavra que diz
E que desdiz através do abismo
O rumor da delícia iluminada
Na leve espessura de umas sílabas.

António Ramos Rosa

Um imenso inconsciente

A psicanálise revelou-nos a existência do inconsciente, no nosso psiquismo, e disse-nos que ele é irracional, que se rege pelo princípio da busca imediata do prazer, que é amoral, entre várias outras características — todas elas tidas como não muito abonatórias da espécie humana. No fundo, o nosso inconsciente será, dizia Freud, como um caldeirão em permanente efervescência na procura da satisfação rápida dos mais recônditos desejos, sem querer saber da realidade nem dos seus constrangimentos para nada. Por outras palavras e simplificando, o nosso inconsciente tem horror ao sofrimento e dana-se por uns bons momentos de loucura.
Freud descobriu isto e fê-lo sem ter podido conhecer as nossas actuais elites políticas, empresariais e jornalísticas — o que lhe reforça o mérito. Na verdade, se Freud andasse por cá nos últimos anos teria podido ver um imenso inconsciente a dirigir o país e como ele — inconsciente — prima a sua acção pela consecução obsessiva do prazer instantâneo: a construção de obras megalómanas (desde a construção desvairada de estádios de futebol até ao enxamear o país de auto-estradas); os gastos astronómicos em parcerias; os negócios de renda garantida sob protecção estatal; a busca, sem olhar a meios, do lucro imediato, etc., etc.
Ao desvario político e empresarial juntou-se depois uma outra forma de manifestação do inconsciente: a irracionalidade, neste caso, a irracionalidade jornalística, que, já há algum tempo, tem sido conivente e  suporte daquele desvario. Hoje deparei-me com mais um exemplo disso.
Quando foi anunciado pelo Instituto Nacional de Estatística que a recessão em Portugal, no último trimestre, continuava a aumentar, mas que não tinha sido tão grave como as piores previsões apontavam, logo um coro de hossanas jornalísticas vieram a público. Hoje, na TSF, António Perez Metelo foi provavelmente o melhor internúncio dessa irracionalidade inconsciente. Há já algum tempo que  optei por deixar de ouvir este jornalista/comentador económico, mas esta manhã ele entrou-me sem convite no carro e de um só fôlego desenvolveu um entusiasmado pensamento. Disse: «Estes dados mostram que o porta-aviões da nossa economia iniciou a mudança de rota. Nos próximos tempos a queda da economia chegará a zero e voltaremos ao crescimento económico. Se não for o cisne negro da Grécia a estragar tudo, muito em breve estaremos em crescimento.» E acrescentou: «Os resultados dos nosso esforço colectivo são admiráveis. Isto deveria ser estudado por sociólogos. Os portugueses perante as dificuldades adaptam-se de uma forma verdadeiramente invulgar. Não há muitos povos no mundo que o façam. Os resultados dos nossos esforços vão causar a admiração de todos.»
Foi depois de ter ouvido estas afirmações que me recordei de Freud, da psicanálise, do inconsciente, da irracionalidade, do desligamento da realidade. Foi depois de ter ouvido estas afirmações que me recordei também do tempo em que Perez Metelo, na mesma rádio, dirigia rasgados elogios à política económica dos governos de Sócrates, em que via sinais favoráveis em tudo que era dado económico, mesmo nos momentos de manifesto estertor. Foi depois de ter ouvido isto que pensei no famoso divã de Freud e de como seria desejável que algumas das nossas figuras mediáticas nele se pudessem deitar.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

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Nacos

Canto II

74
Em Paris até o ar é luxuoso. Em dias de frio,
o nevoeiro francês parece descer até ao nariz dos habitantes,
mas sem nunca perder um certo ar petulante que por estas paragens
o oxigénio tem.
Bloom percebe que no cais há uma mulher,
de pálpebras mais nervosas, que o tenta seduzir.
E tal é mais agradável que uma tentativa de roubo.

75
Cheira a metafísica por todo o lado,
há nevoeiro e carregadores disponíveis
para lhe levarem a mala.
E há ainda inúmeras possibilidades de se exercer nestas terras
o erotismo que se aprendeu noutras.
Bloom está contente.

76
Estando em plena recaída lírica, Bloom, agradado
com a hospitalidade, com os cheiros, os sons e
as raparigas bonitas, pediu ainda algo mais: sentimentos.
Tal elaboração teórica não o impediu, no entanto, 
de retribuir o olhar predador de uma tal parisiense
sem pudor mas com chapéu. Fora do nosso país,
pensou Bloom, as mulheres recebem-nos como se
salvassem um náufrago.

77
As mulheres com chapéu sempre lhe haviam parecido
mais inteligentes.
O chapéu é, em parte, peça de vestuário 50% mental.
Certos chapéus em Paris são mesmo mais mentais
que certas cabeças noutras cidades.
Ah, Paris! Em mais nenhuma cidade se está
mais perto de Paris que em Paris. Daí a sua grandeza.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

segunda-feira, 14 de maio de 2012

«Verdades» de ontem, mentiras de hoje

Recebi, de Marrod, via e-mail, a digitalização de uma página de um livro escrito por um ministro do actual governo. Confiando que se trata de uma informação verdadeira, o número da página é o 511, o nome do livro é Portugal na Hora da Verdade — Como Vencer a Crise Nacional e o seu autor tem o nome de Álvaro Santos Pereira, presentemente a exercer as  funções de ministro da Economia e do Emprego. O livro foi publicado em 2011.
Os comentários sobre o que é afirmado no excerto do livro e o que a realidade revela são desnecessários. Na verdade, o mero confronto entre o conteúdo do texto e os factos é, só por si, elucidativo do estado a que chegou a honestidade intelectual e a verticalidade política.

domingo, 13 de maio de 2012

Pensamentos

«Quando morre alguém que nos sonha morre uma parte de nós»
Miguel Unamuno

«A morte surgia-lhe como uma consagração de que só os mais puros são dignos: muitos homens desfazem-se, poucos morrem.»
Marguerite Yourcenar

sábado, 12 de maio de 2012

Primavera Global


Em Lisboa, momentos de debate:



Ao sábado: momento quase filosófico

Uma capacidade não muito distribuída

Uns viajantes que atravessavam o deserto encontraram uma bússola e foram mostrá-la a Nasreddin [personagem presente em muitos dos contos tradicionais do Médio Oriente], perguntando:
 — O que é isto?
Nasreddin pegou na bússola, examinou-a e desatou a soluçar. Um momento depois, deixando de chorar, pôs-se a rir, um riso violento.
— Porque choras? E porque ris? — perguntaram-lhe os viajantes.
— Pus-me a chorar ao pensar na vossa ignorância — respondeu Nasreddin — pois não sabeis que objecto é este. E depois pus-me a rir ao pensar na minha, porque eu também não sei.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Exames nacionais - apontamentos (1)

O debate em torno da realização de exames nacionais é um debate antigo que tem sido levado a cabo em todos os países. A literatura sobre o assunto é vasta, as experiências realizadas são múltiplas e as conclusões contraditórias. A matéria é complexa e sobre ela não há elementos seguros que nos permitam, com um mínimo de credibilidade, emitir um parecer definitivo a favor ou contra a realização de exames nacionais. 
Ora, o conhecimento generalizado desta realidade faria supor que houvesse algum comedimento quando se opina sobre este tema. Mas não é isto que acontece. No nosso país, pelo menos, parece instalar-se uma certa esquizofrenia sempre que se discute sobre exames nacionais: ou são diabolizados ou são endeusados; ou se pretende extinguir todo e qualquer exame ou se exige que sejam feitos exames a todas as disciplinas e a todo o momento; ou se lhes atribui um carácter meramente aferidor ou se lhes quer conferir um peso decisório absoluto ou quase absoluto. Por vezes, neste debate, chega-se ao ponto em que a argumentação, bastando-se de tal modo a si própria, alegremente prescinde do que a realidade revela. Outras vezes, opta-se por ignorar as questões técnicas e valorizar a acutilância e o delírio ideológicos, acusando-se a outra parte do pior que se pode imaginar. Vivemos nisto. 
Actualmente, mas por mero acaso, o poder educativo faz parte do núcleo obcecado pela realização, proliferação e disseminação dos exames nacionais. Se recuarmos uns anos, recordaremos poderes educativos que militavam no núcleo da extinção total dos exames. O país educativo vive neste baloiço  preto e branco, com certezas absolutas de ambos os lados. A factura deste permanente galear é paga pelos alunos e pelos professores que, sentindo-se numa roda viva, perdem as referências, perdem o sentido do seu estudo e do seu trabalho e sentem-se desgraçadamente marionetas de serviço.

O problema da realização de exames nacionais é um problema complexo e difícil devido à diversidade de factores nele intervenientes e à diversidade da natureza desses factores. Neste problema interferem elementos técnicos e elementos conceptuais: técnicos do domínio da docimologia e conceptuais sobre educação e avaliação. Se, em muitas áreas, ocorre uma elucidação recíproca entre o que é técnico e o que é conceptual, no caso dos exames, o técnico e o conceptual parecem fazer questão de reciprocamente se atrapalharem.
Sem pretensões de nenhuma ordem, apenas em jeito de alguns apontamentos e à medida que o tempo mo permitir, procurarei, nas próximas semanas, deixar algumas opiniões, dúvidas e reflexões pessoais sobre este problema, informando desde já que não milito no fundamentalismo de nenhuma das partes e que tenho uma enorme dificuldade em compreender posições radicais sobre esta matéria.

Bernardo Sassetti (1970-2012)

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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Quinta da música - Franz Liszt

Trechos - Serge Latouche

«O "desenvolvimento duradouro", introduzido como expressão mágica em todos os programas políticos, "não tem por função", tal como afirma Hervé Kempf, "senão manter os lucros e evitar a transformação dos hábitos, quase nada mudando a direcção seguida". Falar de "outro" desenvolvimento, tal como de "outro" crescimento, traduz ou uma grande ingenuidade ou uma grande duplicidade. Recordemos que em 1972, quando o presidente da Comissão Europeia, Sicco Mansholt, retirando corajosamente as devidas ilações do relatório do Clube de Roma, pretendeu inflectir as políticas de Bruxelas no sentido de pôr em causa o crescimento, o comissário francên Raymond Barre expressou publicamente o seu desacordo. Acabou-se por aceitar que era necessário tornar o crescimento mais humano e mais equilibrado. Todavia... sabe-se qual foi o resultado desta ideia.
[...]
A nossa sociedade ligou o seu destino a uma organização fundada na acumulação ilimitada. Este sistema está condenado ao crescimento. Logo que o crescimento se atenua ou pára, entramos em crise e até em pânico. Deparamos com o "Acumulai! Acumulai! É a lei e os profetas!" do velho Marx. Esta necessidade faz do crescimento um "colete-de-forças". O emprego, o pagamento das reformas e a continuidade das despesas públicas (educação, segurança, justiça, cultura, transportes, saúde, etc.) supõem o aumento constante do produto interno bruto (PIB). "O único antídoto contra o desemprego permanente é o crescimento", martela Nicola Baverez, "declinólogo" próximo de Sarkozy, a que se juntam nesta matéria muitos altermundialistas. No fim de contas, o círculo virtuoso torna-se um círculo infernal... A vida do trabalhador reduz-se as mais das vezes à de um "biodigestor que metaboliza o salário com as mercadorias e as mercadorias com o salário, indo e vindo da fábrica para o hipermercado e do hipermercado para a fábrica".»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Às quartas

PRESSENTIMENTO

Uma semente germina no meu cérebro,
sugando a medula da vida e o seu fluxo.
O meu barril terá a cor do sangue, eu sei
que acabarei por enlouquecer.

O meu túmulo não terá coroa de flores,
não terá uma cruz cristã com palavras de luz.
Vento do norte. Uma noite de Inverno.
Mas debaixo do gelo a seiva há-de ferver.

Elmer Diktonius
(Trad.: José Agostinho Baptista)

Barroso, Ronaldo, Mourinho

Há dias, Durão Barroso veio a Portugal dizer que, na sua opinião, os portugueses eram demasiado modestos, que tinham pouca auto-estima e muita falta de confiança nas suas próprias capacidades. Nesse momento de confidência, acrescentou que, em lugar de cultivarmos tanta falta de confiança, deveríamos olhar para os exemplos de Cristiano Ronaldo e de José Mourinho.
É irresistível não comentar isto.

Apesar de ser verdade que, em geral, os portugueses são um povo com falta de crença em si próprio, Durão Barroso não está credibilizado para o dizer. No mínimo, por duas razões:
1.ª Foi precisamente Durão Barroso quem demonstrou uma terrível falta de confiança em si próprio e no povo português, no momento em que fugiu do governo para se exilar na Comissão Europeia. Se Durão Barroso tivesse crença naquilo que ele próprio poderia fazer por Portugal e nas capacidades dos portugueses, certamente que não teria saído a meio do mandato para o qual tinha sido eleito.
2.ª Durão Barroso faz parte do grupo de políticos que a propósito de quase tudo repete incansavelmente: «não podemos esquecer que somos um país pequeno», «é preciso ver que somos apenas 10 milhões», «temos de ter presente que somos um país periférico, que estamos longe do centro da Europa», «sabemos que a nossa voz dificilmente se poderá fazer ouvir», etc. Esta cultura de menorização, que redunda em posturas subservientes, foi propalada e praticada por Durão Barroso e por quase todos aqueles que ocuparam (e ocupam) os mais altos cargos do Estado português, nos últimos anos. Esta persistente cultura tem contribuído de forma significativa para a descrença dos portugueses em si próprios.

Durão Barroso também não deveria ter dado como exemplos a seguir os dois que escolheu. No mínimo, por duas razões igualmente:
1.ª O futebol é um jogo, nada mais. Saber dar uns pontapés e umas cabeçadas numa bola, fazer umas fintas, dar umas corridas ou treinar uns rapazes para fazerem isso não me parece que possa constituir paradigma seja do que for. Esclareço que gosto e que vibro com o futebol, mas apenas durante 90 minutos, e sei que o futebol, se servir de exemplo para alguma coisa, será provavelmente como exemplo de um pântano onde se atolam valores e práticas repugnantes.
2.ª Por outro lado, comportamentos grosseiros, petulantes, arrogantes, mal-educados, dessolidários, sem fair play, agressivos (verbal e fisicamente) devem ser exemplo de quê e para quem? 
Nem a um filho nem a um aluno dei nem darei como modelo a seguir nenhuma daquelas duas figuras. Seguramente que o caminho que os portugueses devem trilhar não é o de copiar o comportamento de qualquer uma dessas personagens, assim como também não é o de copiar o comportamento de Durão Barroso.

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terça-feira, 8 de maio de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema

Nacos

Canto II

69
Em Paris o amor é proporcional à realidade,
disseram-lhe dois homens durante a viagem. É uma cidade
que recebe bem os poetas. As mulheres são rigorosas
nas coxas e na sintaxe. À superfície existe trabalho mental
e os varredores de ruas utilizam adjectivos raros.
Nos talhos contam-se as melhores histórias
para crianças. E aos domingos, nos grandes parques,
fazem-se exercícios físicos que parecem notícias
acabadas de se receber por carta. Há ainda repetições
absolutamente exóticas.

70
Procuro uma mulher, disse Bloom, ou então
a sabedoria. Se em Paris não as encontrares juntas,
responderam-lhe, pelo menos com uma delas
te cruzarás. E uma pode levar-te à outra.
Claro que é menos provável
uma mulher levar-te à sabedoria
que ao seu quarto, disseram a Bloom,
mas se por um extraordinário acaso acontecer,
não te esqueças de a relembrar: o quarto, primeiro
o quarto. E Bloom Sorriu.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Mudanças?

Foi, e certamente que continuará a ser, uma delícia ouvir os comentários dos resultados das eleições francesas por parte daqueles que, até ontem, eram convictos defensores das brutais políticas de austeridade levadas a cabo em alguns países europeus. Bastou a possibilidade de um novo perfume francês invadir o ar europeu para que, subitamente, a inevitável e imperiosa austeridade deixasse de ser tão inevitável e tão imperiosa e para que magicamente a palavra crescimento voltasse a entrar no léxico do discurso dominante. 
Com um delicioso espanto, passámos a ouvir dizer que, afinal, «crescimento agora e já» todos queremos, e que a dúvida residia somente em saber qual o melhor caminho para lá chegar. «De repentemente» (como diz um amigo meu), o mundo deu uma volta, e o «candidato fraco, cinzento e perdedor» conseguiu alterar, pelo menos por agora, um certo rumo dos acontecimentos.
Porém, tudo isto pouco significado terá no futuro se Hollande acabar por revelar ser apenas mais um daqueles políticos que tudo prometem nas eleições e depois de eleitos decidem agir à revelia dos compromissos assumidos. Desgraçadamente, os portugueses conhecem muito bem esta estirpe de governantes.
Mas mais importantes que os resultados da eleições francesas são os resultados das eleições gregas. Do que se vai passar na Grécia vai depender, em muito, o futuro da Europa. Neste momento, parece claro que ou a política europeia muda celeremente de rumo ou o nosso continente e o mundo vão passar um mau bocado. Se o vale tudo financeiro não acabar, se a cegueira germânica não terminar e se os seguidores do nova moda liberal não tomarem juízo, os gregos certamente irão mostrar, provavelmente de forma dolorosa — para eles e para todos —, uma de várias formas de colocar um ponto final em tudo isto.

domingo, 6 de maio de 2012

Hazmat Modine

Pensamentos de domingo

«O comércio é a escola do engano.»
Luc de Clapiers Vauvenargues

«Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não vos será possível enganar sempre toda a gente.»
Abraham Lincoln

«Não lamento os homens, os homens refazem-se; não lamento o ouro destes tesouros, os tesouros voltam a encher-se; mas quem restituirá a estes povos os anos que vão passando?»
Denis Diderot
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 5 de maio de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Uma história indiana fala das relações entre a santidade e a luxúria.

Um eremita tinha-se retirado para a floresta e, como mandava o costume, só comia ervas e alguns frutos, esforçando-se por avançar todos os dias na senda espinhosa da santidade.
Na pequena cidade vizinha morava uma prostituta que vivia, desde a mais precoce juventude, do comércio com os homens. O santo eremita ia vê-la muitas vezes e reprovava-lhe a sua vida depravada. Mas ela respondia-lhe que nunca tinha conhecido outra vida e que, por mais que isso a entristecesse, não podia mudar.
O eremita e a prostituta morreram no mesmo dia. Para espanto do santo homem, os demónios vieram buscá-lo, enquanto os mensageiros celestes levavam a mulher para o paraíso.
— Mas porque tenho eu de ir para o inferno — queixou-se o eremita — ao passo que esta debochada vai conhecer o céu e ver os deuses?
Uma voz respondeu-lhe:
— Porque ela nunca gostou da vida que levou, ao passo que tu amaste a tua. O seu coração manteve-se puro, ao passo que tu, deixaste-te invadir pelo desejo e pela vaidade. Contemplando os pecados alheios e comparando-os com a tua vida, que crias santa, tornaste-te impuro. A verdadeira prostituta és tu.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Actividades de substituição - a nódoa mantém-se (2)

A propósito do que escrevi na semana passada sobre as actividades de substituição (agora com um nome mais elaborado: actividades de enriquecimento e complemento curricular), recebi um e-mail do(a) leitor(a) JVM que me colocou a seguinte questão: «Da leitura que fiz do seu texto, concluí que não concorda com as actividades de substituição e depreendi que concordaria com as aulas de substituição. Mas as aulas de substituição enfermariam do mesmo problema: um professor desconhecido a dar uma aula numa turma desconhecida. O problema manter-se-ia, portanto.»
Para além de agradecer a questão formulada, tentarei explicar qual é a minha opinião sobre este assunto.

Ponto prévio: a falta isolada de um professor a uma aula nunca constituiu nem constitui um problema grave para os alunos nem para a escola, seja qual for o ponto de vista a partir do qual se pretenda analisar essa falta. Nunca o foi e não se percebe que, de repente, tenha passado a sê-lo. Se não se tivesse caído na tentação de fazer demagogia fácil, se não se tivesse pretendido manipular a opinião pública, se não se tivesse querido obter votos através de truques retóricos intelectualmente desonestos, não se teria tentado inventar razões para justificar a desenfreada corrida a actividades de substituição, e, com menos razão ainda, para serem aplicadas sempre que ocorre a falta de um professor.
Temos pois que distinguir entre a falta isolada e as faltas continuadas.
De uma falta isolada não vem nenhum mal ao mundo, de faltas continuadas é claro que podem vir consequências negativas para os alunos. Refiro-me a faltas continuadas durante períodos curtos — como são as situações em que um professor, por motivos de força maior (doença, acompanhamento de familiar doente, etc) tem de faltar, por exemplo, duas semanas, não sendo possível, nesta circunstância, proceder à colocação de um outro professor, ao contrário do que acontece nas faltas por períodos prolongados. É, pois, no contexto de faltas continuadas durante períodos curtos (inferiores a um mês) que eu concordo com as aulas de substituição, se leccionadas por um professor da mesma disciplina, nos termos que a seguir enuncio.
A instauração de um sistema de aulas de substituição sério, com validade científica e pedagógica, carece, no meu entendimento, de três requisitos:

i) a prática de efectivo trabalho colaborativo entre os professores do mesmo grupo disciplinar, de modo a que haja acompanhamento e partilha de informação acerca do trabalho que, ao longo do ano, está a ser desenvolvido por cada professor e das principais características das respectivas turmas;

ii) a organização, no início dos anos lectivos, dentro de cada grupo disciplinar e em função dos horários distribuídos, de pares de professores (ou trios, ou... o número depende das características dos horários dos docentes e da dimensão do grupo disciplinar), que, trabalhando colaborativamente, estarão preparados para substituições recíprocas se ocorrerem faltas durante períodos curtos. No início do ano lectivo, estes pares de professores devem ser apresentados às respectivas turmas e os alunos informados do que ocorrerá em caso de ausência de curta duração de algum dos seus professores;

iii) o pagamento de horas extraordinárias ao docente que leccionar as aulas do colega ausente. Trata-se de trabalho lectivo extraordinário e imperativamente tem de ser pago como tal.

O cumprimento destes três requisitos assegura as condições para a realização de um trabalho científica e pedagogicamente sério. Penso que é um processo competente de evitar as nefastas consequências  ocorridas nas situações de faltas continuadas durante períodos curtos (uma, duas, três semanas).
Mas, repito, estamos a falar de aulas não estamos a falar de entretenimento — de entretenimento que, na actual forma de actividades de substituição, tem gerado e continuará a gerar: indisciplina, propagação de maus exemplos comportamentais, desautorização de professores e de funcionários, inconsequente desgaste de energias, desmotivação e desequilíbrios psicológicos graves.

Esta é a minha opinião sobre as aulas de substituição. Se por qualquer razão não for possível respeitar os três requisitos acima referidos, é preferível não fazer nada do que fazer o que actualmente é feito em muitas escolas: sempre que falta um docente, há um professor que se dirige à sala de aula de uma turma que desconhece para «tomar conta dela» ou para, pretensamente, desenvolver «actividades de enriquecimento e complemento curricular».
Se se pretendem verdadeiras «actividades de enriquecimento e complemento curricular», estas farão sentido se forem desenvolvidas em espaços próprios que os alunos livremente possam frequentar, nas situações de faltas isoladas de um professor ou nos momentos em que o horário da turma o permita.

Muitas escolas, muitos professores e muitos alunos estão a pagar um elevadíssimo preço pela irresponsabilidade que foi a implementação das actividades de substituição criadas por Rodrigues. É imperioso terminar com esta situação, e já será tarde.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Quinta da música - Serge Rachmaninov

Trechos - Serge Latouche

«O decrescimento é um slogan político com implicações teóricas, uma "palavra-obus", como diz Paul Atès, que procura acabar com a linguagem estereotipada dos drogados do produtivismo. Dado que o contrário de uma ideia perversa não é necessariamente uma ideia virtuosa, não se trata de preconizar o decrescimento pelo decrescimento, o que seria absurdo, embora, afinal, não o fosse mais nem menos do que preconizar o crescimento pelo crescimento... A palavra de ordem do decrescimento tem sobretudo por finalidade ficar a assinalar claramente o abandono do objectivo do crescimento ilimitado, cujo motor não é senão a busca do lucro pelos detentores do capital, com consequências desastrosas para o ambiente e, portanto, para a humanidade. Não só a sociedade está reduzida a ser apenas o instrumento ou o meio da mecânica produtiva, mas o próprio homem tende a tornar-se o resíduo dum sistema que visa torná-lo inútil e a passar sem ele.
O decrescimento para nós não é o crescimento negativo, um oximoro absurdo que traduz o domínio do imaginário do crescimento. Todos sabemos que o mero abrandamento do crescimento faz mergulhar as nossas sociedades na confusão, aumenta a taxa de desemprego e desencadeia o abandono dos programas sociais, de saúde, educativos, culturais e ambientais que asseguram o mínimo indispensável da qualidade de vida. Podemos imaginar a catástrofe que uma taxa de crescimento negativa iria provocar! Tal como não há nada pior do que uma sociedade "trabalhista" sem trabalho, também não há nada pior do que uma sociedade do crescimento em que este falha ao encontro marcado. Esta regressão social e civilizacional é precisamente o que nos espera se não mudarmos de trajectória. Por todas estas razões, o decrescimento só é concebível numa "sociedade do decrescimento", ou seja, no quadro dum sistema que se baseia noutra lógica. A alternativa é, portanto, o decrescimento ou a barbárie!
Em rigor, ao nível teórico conviria falar de "a-crescimento" — tal como de fala de a-teísmo —, mais do que de-crescimento. Trata-se, aliás, neste aspecto, de abandonar uma fé ou religião, a da economia, do progresso e do desenvolvimento, de rejeitar o culto irracional e quase idólatra do crescimento pelo crescimento.
De início, decrescimento é, portanto, apenas uma bandeira atrás da qual se congregam os que procederam a uma crítica radical do desenvolvimento e pretendem desenhar os contornos dum projecto alternativo para uma política do pós-desenvolvimento. O seu objectivo é uma sociedade em que se viverá melhor, trabalhando menos e consumindo menos. Trata-se duma proposta necessária para reabrir o espaço da inventividade e da criatividade do imaginário, bloqueado pelo totalitarismo economicista, desenvolvimentalista e progressista.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Às quartas

REALIDADE

Anseio uma outra realidade para lá das Montanhas
Não me tragam desânimos desalentos opacidades fugas
Foi quando a carne partia nas asas dos insectos
E as raízes das ervas daninhas sugavam os restos
Quando outros entre os ossos procuravam réstias de vida
Aves lutando entre si nas noites sem fim
Já uma Águia branca havia atravessado todos os trópicos
Latitudes longitudes norte e sul pontos cardeais dimensões
Sóis planetas sistemas galáxias enxames expansões
Ela suspirava gemente por uma Morada
Nem que fosse uma nebulosa a cauda dum cometa
Real ou sonhada Deus a havia prometido
O tinha ouvido no doce embalar do colo materno
Quando seu peito era uma promessa de Sempre

Álvaro José Ferreira Gomes

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terça-feira, 1 de maio de 2012

Ironias de Maio

1.º de Maio de 1974.
A história está repleta de ironias, e hoje, 1.º de Maio, suportamos mais algumas dessas ironias. 
É uma amarga ironia observar a aparência de respeito formal e institucional que a celebração do Dia do Trabalhador merece por parte de quem nos governa e ao mesmo tempo observar o desrespeito real e sistemático pelos trabalhadores, levado a cabo precisamente pelos mesmos que nos governam. 
A imensa hipocrisia que domina a nossa política permite que todos os dias se opte por prejudicar gravemente a vida dos trabalhadores e que simultaneamente, para as câmaras das televisões, se assevere a maior consideração pelo 1.º de Maio. Na verdade, para que fosse preservada alguma seriedade na política praticada pelos nossos responsáveis, o primeiro feriado nacional que o governo deveria ter proposto para ser extinto era justamente o Dia do Trabalhador. Seria compreensível e até louvável pela sinceridade que isso demonstraria. O que não é compreensível nem aceitável é esta momice em que vivemos, acompanhada do permanente desprezo pelos assalariados.
Não é igualmente aceitável que alguns patrões portugueses tenham a insolência de comunicar que é do interesse dos trabalhadores celebrar o 1.º de Maio a trabalhar. É curioso que não sigam idêntico critério no dia de Natal e no dia de Páscoa.
À generalizada iliteracia e inépcia dos empresários portugueses tem-se acrescentado uma cada vez maior impudência em relação a tudo o que tenha que ver com respeito pelos direitos de quem obtém um vencimento pelo trabalho que realiza.
Seis dias depois de termos suportado a ironias de Abril, suportamos a ironias de Maio. E para que as ironias não tendam a repetir-se indefinidamente, não seria mau que, em lugar de se pronunciar tanto o verbo celebrar, se praticasse mais o verbo batalhar, ou o verbo combater, ou o verbo contender, ou o verbo militar, ou o verbo pugnar, ou qualquer outro verbo que signifique agir para mudar a situação em que nos encontramos.