Canto III
112O medo, neste século, já não é um produto artesanal.Os aviões bombardeiros— ou, em tempo de paz, as falências imprevistas —impressionam pela tecnologia posta em acção.Hoje, passa-se fome de modo bem mais modernodo que no século XVIII, por exemplo.
113No presente século passa-se fome frentea certos alimentos caros, enquanto em séculosanteriores passava-se fome diante de gastronomiasmenos requintadas.No fundo, há um conjunto de desgraçadospara os quais o fantástico desenvolvimento da culinárianão teve qualquer efeito prático.
114A vida é isto: a lua está mais próximade alguns homens que treinam para astronautasque um prato quente da boca de outros homens.É aquilo a que podemos chamar: distânciasrelativas. Por mim, não me queixo.Estômago cheio, boas pernas, boa cabeça.
115E claro que a quantidade de chá depende da chávena,ou seja, os problemas são acontecimentosde estimação para cada der vivo— ninguém passa sem eles.Veja-se o problema do trânsito nas grandes cidades:por vezes parece que não chegaremos a casaantes de os americanos irem outra vez à lua.Mas no fundo é isto:cada um é escolhido pelas suas preocupações.Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.