quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O deserto

Os desertos da natureza fascinam, os desertos de ideias constrangem ou irritam. Constrangem, se, resultando de impossibilidade justificada, quem os protagoniza, tendo consciência dessa impossibilidade, a assume; irritam, se, por preguiça mental ou por trapaça intelectual, quem os protagoniza quer parecer que sabe aquilo que não sabe.
Lamentavelmente, Nuno Crato entra nesta última categoria. A recente entrevista que deu ao Público é mais uma confirmação do deserto de ideias que nele habita. É extraordinário comparar o discurso que Crato foi proferindo ao longo dos últimos anos (até ser empossado de ministro) e o seu actual discurso. Onde antes pintava a manta — com implosões de ministérios, com verdades absolutas sobre a avaliação dos alunos e sobre a avaliação dos professores, com inquestionáveis evidências sobre tudo e alguma coisa mais — agora «choca-se com a realidade» ou responde desta forma: perguntado sobre o objectivo com que iria repensar o modelo de financiamento do ensino superior, disse: «Está tudo em aberto»; perguntado sobre os critérios que esse modelo poderia adoptar, disse: «Vamos pensar nisso»; perguntado se já tinham começado a pagar as bolsas, disse: «Ainda não»; perguntado se tinha ideia de quantos alunos iriam perder o direito à bolsa, disse: «Ainda não».
Para além dos «está tudo em aberto», dos «vamos pensar nisso» ou dos «ainda não», Crato mostrou um enorme deserto de ideias, escondido por detrás de meia dúzia de frases que nada explicam ou que nada significam. Alguns exemplos:
 — disse que 46,7% do pessoal da administração central está no Ministério da Educação, o que, para ele, é «um valor extraordinário». Contudo não explicou a razão por que o considera «extraordinário». Quais são os referenciais que ele possui, e que não revelou, para podermos concordar ou discordar do adjectivo «extraordinário»? Qual é a fundamentação e o rigor da apreciação? Qual é a percentagem a partir da qual, no entender do ministro, deixa de ser «um valor extraordinário»?;
— disse que não estamos em época de contratar mais professores do que o estritamente necessário. Todavia, não esclareceu o que é, no seu entendimento, o «estritamente necessário». Como também não explicou quando e quem contratou professores para além do «estritamente necessário»;
— disse que a disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação vai terminar no 9.º ano, porque, e cito: «Nesta idade, a maioria dos jovens já domina os computadores perfeitamente». A justificação provoca perplexidade: porque é um hino à vulgaridade opinativa e porque é falsa — a não ser que o ministro entenda que dominar um computador signifique saber ligá-lo, navegar na net, jogar, ir ao e-mail e desligá-lo;
— disse que nas actividades extracurriculares do 1.º ciclo, que são da responsabilidade das autarquias, tem de se ver o que é essencial e o que é acessório. Para esclarecer o que, para si, era essencial e era acessório, explicou: «Se é só para manter as crianças nas escolas para ajudar os pais enquanto estão no trabalho, é uma coisa. Mas se é para lhes dar alguma componente educacional, então temos de pensar o que podemos fazer melhor». Explicação concluída, fica-se na mesma quanto à destrinça entre o que é essencial e o que é acessório;
— disse, como se a conversa fosse sobre amendoins, que ia «tentar encerrar mais umas 300 escolas» do 1.º ciclo, sem dar justificação; disse que no ensino básico quer reduzir o número de disciplinas às essenciais, sem explicar o seu conceito de «essencial», para nos permitir perceber porque escolhe umas disciplinas e não outras; e disse... e disse...
A entrevista é uma monótona repetição de indeterminações ou de afirmações que nada esclarecem, ou de vulgaridades. Lida a entrevista ficamos a saber o que sabíamos antes de a ler.
As antigas certezas e a aparente clarividência do comentador deram lugar ao pensamento árido e estéril do ministro.