«Era meio-dia e um quarto e sol forte, quando o homem soube que a mulher morrera. Foi assim de repente, com todas as pontadas ou tiros de emboscada.
Ele estava sentado numa esplanada em Santos, e chegaram uma rapariga e um engenheiro, que era uma espécie de noivo da rapariga. O engenheiro telefonara meia hora antes a dizer: «A Teresa e eu queremos ver-te com muita urgência.» O homem notara uma solenidade na voz que lhe telefonara, mas pensando que quando muito o outro estaria mais engenheiro do que da última vez.
Tinham combinado encontro na esplanada em frente do Jardim de Santos. Sentado aí, ele observou o engenheiro e a rapariga avançando, ao sol de um dia de meio-dia e um quarto muito forte. De cada vez que o homem via a rapariga pensava na irmã mais velha dela, pensava na outra até por causa desta, cuja consciência já não tinha as dores de saber coisas como o meu azar foi não ser feia ou então bonita doutro modo.
O homem levantou-se quando o par chegou junto das mesas, e viu que a irmã mais nova da mulher não sabia o que lhe havia de dizer. «Está tudo solene hoje», pensou ele. «São Miguel Arcanjo deve ter partido um bule ao pequeno-almoço.» Nessa altura viu uma lágrima, aparecendo, vinda de trás dos óculos pretos que tapavam os olhos da rapariga. Estendeu rapidamente a mão e tirou-lhe os óculos. Então ele viu as lágrimas todas e a vermelhidão de muitas outras antes, e perguntou: «O que foi?» «A Zana morreu», disse a Teresa.
O homem olhou para a calçada, viu um bilhete de carro eléctrico caído entre duas pedras de basalto. Naquele momento não sentia ainda nada de especial. Só percebeu bem a ilusão dessa insensibilidade anos e anos decorridos; a imagem exacta do rectângulo encarnado entre duas pedras pretas permanecia nele tão inalterada como quando, nessa manhã de dia com sol forte, olhando para o engenheiro, viu também e ainda a imagem do bocadinho de papel caído no basalto.»
Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Dom Quixote