sábado, 4 de dezembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

O Céu em filme

«Foi a Outra Vida retratada no cinema que deu ao Céu os seus pormenores mais sumarentos. Pensemos em Fausto, o clássico alemão do cinema mudo de 1926, a preto e branco. Se bem que o filme não se centre no Céu quotidiano, a imagem de Fausto a velejar pelo espaço-tempo contínuo com o diabo a seu lado oferece um vislumbre da paisagem do Céu: raios de luz forte a espreitar por entre a neblina e edifícios gregos clássicos aparentemente abandonados antes de estarem totalmente construídos. Uma grande parte da imagística provém de artistas rabugentos como Dürer e Bruegel, por isso o Céu de Fausto parece lúgubre e misterioso como o inferno e não é um lugar feliz para passar a eternidade.
A neblina tornou-se obrigatória em filmes posteriores. Na comédia, de 1941, Here Comes Mr. Jordan, vemos o que ficou conhecido no departamento de efeitos especiais de Hollywood como o Céu de "gelo seco" — um amontoado de material fino e fumarento sobre o qual os defuntos podem caminhar.
O Céu não passa de um cenário de passeio no musical, de 1943, Cabin in the Sky, com um elenco composto exclusivamente por afro-americanos, mas vale a pena referir que eles continuam a caminhar sobre nuvens.[...]
Apenas alguns anos depois de Jordan e Cabin, surgiu um Céu surpreendentemente sofisticado no filme britânico A Matter of Life and Death. Visualmente, o seu conceito mais inteligente é que o Céu é a preto e branco, enquanto que a vida na Terra tem cores fortes. (Um habitante do Céu que vem tratar de um assunto à Terra comenta: "Lá em cima estamos sequiosos de cor.") O Céu é terrivelmente austero e profissional; actualizar os registos de quando e quem morreu exactamente mantém os escriturários ocupados o dia inteiro. O aspecto é futurista para a década de 1940 — tapetes rolantes com as pessoas que faleceram recentemente, pares de asas em prateleiras de roupa de grandes armazéns, uma máquina automática de bebidas.
O enredo de A Matter of Life and Death é estritamente de "conceito superior", mas coloca algumas questões filosóficas relevantes: O Céu será apenas uma alucinação, o resultado de lesões cerebrais que podem ser tratadas através de cirurgia? Será a disponibilidade para morrer por um ente querido o teste máximo ao amor verdadeiro? Será melhor viver a preto e branco do que a cores?
Esta última questão sugere que o Céu em si é um filme, ou pelo menos um bom cenário para um filme.
Quando o grande produtor e realizador de Hollywood, Otto Preminger, chegou ao Céu, São Pedro foi recebê-lo às Portas do Paraíso e explicou-lhe que Deus gostaria que ele realizasse mais um filme.
Preminger fez uma careta.
— Mas eu reformei-me anos antes de morrer. Estou cansado de todas as confusões que surgem quando se faz um filme.
— Escute — explicou São Pedro —, nós convencemos o Ludwig van Beethoven a compor uma banda sonora original para o filme...
— O senhor é que não me está a escutar — protestou Preminger. — Eu não quero fazer mais filmes.
— Mas temos o Leonardo da Vinci para criar os cenários — exclamou São Pedro.
— Eu não quero fazer mais filmes! — insistiu o realizador.
— Dê uma vista de olhos a este argumento — insistiu São Pedro. — Foi o William Shakespeare que o escreveu para si!
— Bem — disse Preminger —, uma banda sonora do Beethoven, cenários do Leonardo, argumento de Shakespeare... Como é que posso falhar? Eu faço-o!
— Fantástico! — exclamou São Pedro. — Só queria pedir-lhe um pequeno favor... Tenho uma namorada que canta...»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.159-161.