sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 3

Ainda dentro da primeira dimensão da avaliação do desempenho — «Vertente profissional, social e ética» — encontramos três descritores para cada um dos cinco níveis de desempenho. Aparentemente, temos um total de quinze descritores, mas, na realidade, eles são vinte e seis, porque, misteriosamente, grande parte daqueles quinze resultam da concentração de descritores autónomos. Digo misteriosamente, porque, do ponto de vista teórico, um descritor deverá ser simples, objectivo e conciso, de modo a que possa ser classificado de «evidência» — termo muito querido pelos denominados cientistas da educação —, ora unir descritores é caminhar no sentido inverso, é criar ruído, e zonas de indefinição. Mas eles lá saberão...

Um dos descritores do nível de «Excelência» diz: «O docente demonstra claramente que reflecte e se envolve consistentemente na construção do conhecimento profissional e no seu uso na melhoria das práticas.»
O descritor equivalente para o nível abaixo, o «Muito Bom», diz: «O docente demonstra que reflecte e procura activamente manter actualizado o seu conhecimento profissional, que mobiliza na melhoria das práticas.»
Deste modo, a diferença entre um e outro descritor está: no «claramente», que desaparece no segundo descritor; no «envolve» do primeiro descritor que é substituído pelo «procura» no segundo; no «consistentemente» do primeiro que é substituído por «activamente» no segundo; e, ao que parece, na ideia de que um professor (o excelente) «constrói» o seu conhecimento profissional e o segundo (o muito bom) «actualiza» o seu conhecimento profissional.
Vamos lá ver. Quando se considera que alguém demonstra que sabe algo, que demonstra que conhece algo, que demonstra que reflecte sobre algo, etc. significa que o revela de modo inequívoco, de modo claro. Não é possível demonstrar de modo duvidoso, se é de forma duvidosa, já não é uma demonstração. O Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, na entrada lexical «Demonstrar» dá a seguinte informação semântica, aplicável a este contexto: «Dar a conhecer, tornando claro e evidente». O Dicionário Houaiss também não deixa equívocos quanto ao significado de «Demonstrar»: «Tornar evidente através de provas». Assim, se o demonstrar implica necessariamente clareza e evidência, exigir «demonstrar claramente que reflecte» é exigir o quê? É exigir que o professor revele claramente com clareza que reflecte?
O Ministério da Educação e os denominados cientistas da Educação, que ocupam as secretárias da 24 de Julho, quando escrevinham estas coisas deveriam atribuir a si próprios a obrigação, que dirigem aos outros, de «demonstrar claramente» o que pretendem.

A outra diferença entre o nível de «Excelente» e de «Muito Bom» parece residir na diferença entre «envolvência consistente na construção» e «procura activa na actualização». Um professor «envolve-se consistentemente em construir», o outro «procura activamente actualizar-se».
Vamos ver se aqui não acontece o que acontecia a Santo Agostinho sempre que lhe perguntavam o que era o «Tempo». Dizia ele: «Se ninguém mo perguntar o que é, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.» Passo então à fase das perguntas: o que é uma «envolvência consistente»? Rigorosamente, em que é que isso se traduz? Enquanto não se definir rigorosamente o conceito, de modo verificável, não se pode aquilatar da sua existência na realidade. Toda a gente sabe o que é uma «envolvência consistente»? Só eu é que não sei? Está bem, passo às pergunta seguintes: como se verifica/avalia a «envolvência»? Chamo a atenção de que não se trata de uma simples constatação/verificação, trata-se, na verdade, de avaliar se determinada realidade (no caso, o comportamento de «envolvência» de um professor) se configura com o que se definiu ser «envolvência». Que instrumentos existem para avaliar se há «envolvência»? Onde reside a fronteira operativa entre a «envolvência» e a «não envolvência»? Segundo que critérios se encontra essa fronteira? Através de um novo descritor que vai descrever o descritor que se pretende verificar/avaliar?
O que agora se perguntou relativamente à «envolvência» pergunta-se, nos mesmos termos, relativamente à «consistência». E pergunta-se relativamente ao que se entende por «construção» do conhecimento. Isto é, pergunta-se pela definição verificável de cada um destes conceitos, pergunta-se pelos critérios e pelos instrumentos de avaliação. Quais são, onde estão, cadê eles? Sem isto, não é possível distinguir o nível «Excelente» do nível «Muito Bom».
Para se elaborar um modelo de avaliação não chega debitar uma meia dúzia de frases giras e utilizar uma terminologia aparentemente técnica, como «descritores», «indicadores», «domínios» e por aí fora. A realidade não se encobre com palavras.
A procissão ainda vai no adro. Para a semana, manter-nos-emos ainda na primeira dimensão da avaliação do desempenho.