sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fragmenti veneris diei

«Um mês depois, um amolador que percorria a Rua El Arroyo, nos limites entre o bairro Ciudad Nueva e o bairro Morelos, viu uma mulher que se agarrava a um poste de madeira como se estivesse bêbeda. Perto do amolador passou um Peregrino preto com os vidros fumados. Na outra ponta da rua, viu aproximar-se, coberto de moscas, o vendedor de doces. Os dois convergiram no poste de madeira, mas a mulher tinha escorregado ou já não tinha força para se segurar. A cara da mulher, semioculta pelo antebraço, era uma massa disforme de carne vermelha e roxa. O amolador disse que era preciso chamar uma ambulância. O vendedor de doces olhou para a mulher e disse que até parecia que ela tinha combatido quinze rounds com o Torito Ramírez. O amolador apercebeu-se de que o vendedor de doces não ia arredar pé e disse-lhe para tomar conta do seu carrito, que ele voltava já. Quando atravessou a rua de terra voltou-se para se certificar de que o vendedor de doces lhe obedecia, e viu todas as moscas, que antes rodeavam este, em volta da cabeça ferida da mulher. Nas janelas do passeio em frente, umas mulheres observavam-nos à janela. Temos que chamar uma ambulância, disse o amolador. Esta mulher está a morrer. Ao fim de um bocado chegou uma ambulância do hospital e os enfermeiros quiseram saber quem tomava a responsabilidade do transporte. O amolador explicou que ele e o vendedor de doces a haviam encontrado deitada no chão. Já sei, disse o enfermeiro, mas agora o que interessa é saber quem se responsabiliza por ela. Como é que quer que eu me responsabilize por esta mulher se nem sequer sei como se chama?, disse o amolador. Mas alguém tem de se responsabilizar, insistiu o enfermeiro. Mas estás surdo ou quê, pá?, exclamou o amolador enquanto tirava de uma gaveta do seu carrito uma enorme faca de trinchar. Bem, bem, bem, disse o enfermeiro. Bora lá, metam-na na ambulância, disse o amolador. O outro enfermeiro, que se tinha agachado para observar a mulher caída espantando as moscas com as mãos, disse que era inútil tratarem-se mal, pois a mulher já estava morta. Os olhos do amolador ficaram tão pequenos que até pareciam duas linhas desenhadas a carvão. Seu cabrão de merda, foi por tua culpa, disse, e desatou a correr atrás do enfermeiro. O outro enfermeiro quis intervir mas depois de ver a faca na mão do amolador decidiu fechar-se dentro da ambulância, de onde participou à polícia. Durante um bocado o amolador perseguiu o enfermeiro até que a raiva, a fúria ou o rancor diminuíram, ou até que se cansou. E quando isto aconteceu, parou, pegou no carrinho e afastou-se pela Rua El Arroyo até que os curiosos que se tinham juntado em volta da ambulância o perderam de vista.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 413-414.