sexta-feira, 26 de junho de 2009

Fragmenti veneris diei

«No princípio foi o frio. Quem tem frio em pequeno, terá frio para o resto da vida, porque o frio da infância nunca desaparece. No mínimo, fica entranhado nas partes mais recônditas do corpo, a partir de onde se expande por todo o organismo quando as condições exteriores são favoráveis. Calculo que deve ser duríssimo provir de um embrião congelado.
[...]
Uma vez por semana tinha lugar uma limpeza geral do corpo. A casa de banho era um local todo escalavrado e frio, frio, frio. Tínhamos uma banheira com pernas, mas lavávamo-nos num alguidar que a mamã colocava no meio do chão. Comecei aa chamar-lhe "mamã", agora, que estou mais velho, mas sempre a tratei por "mãe". A mamã, então, colocava um alguidar de água a ferver no meio da casa de banho. Como era impossível que uma pessoa se despisse ali sem perecer, pegava fogo a um prato cheio de álcool cuja chama, quase invisível, proporcionava um calor tão intenso como fugaz. Aprendi naquela época que o ar quente tem a propriedade de ascender para as camadas altas da atmosfera. O ar temperado pelo álcool subia, portanto, até ao tecto alto e o frio que vinha do chão envolvia-nos logo a seguir, como se fosse um sudário. Mas durante aqueles segundos de calor o corpo era feliz.»
Juan José Millás, O Mundo, Planeta Manuscrito, pp. 14-16.