Sem saber como, dou por mim inscrita numa prova de atletismo, com contornos sui generis. Uma prova global, onde tudo é medido à velocidade do tempo. Não importa o desempenho. Não partimos ao mesmo tempo. Não há controlo anti-dopping. O que importa é correr, desalmadamente, desmesuradamente. Todos correm, como num conto de Kafka, repetidamente, todos os dias, sem nunca ver a meta. Vejo-me, eu, em posição de partida, é Setembro, corro para uma, múltiplas planificações, para cumprir um horário, é Dezembro, quase fujo do atropelo da avaliação do desempenho, corro para outras avaliações, é Março, arquejo e corro, vou para a rua, corro e marcho, somos muitos, corro sobre pilhas de documentos, a letra miúda de despachos e decretos, a letra transviada daqueles que correm para “passar de ano”, é Maio, o batimento cardíaco avisa-me que preciso abrandar, mas corro, para cumprir programas, numa pernada vou entrar em Junho, já não aguento mais, e corro, e continuo sem saber para onde. À minha volta ouço passadas fortes, outros percursos, uma mesma corrida desnorteada, poupar, é o Governo que corre, arrecada números, pelo caminho, atropela outros participantes, tropeçam todos, corre cada um para seu lado. Ouço aplausos e apupos, também eles de corrida, efemeramente, tudo é passageiro e, paradoxalmente, tudo se me afigura interminável, foram-se os sinais de abrandamento, de limite de velocidade. Hoje mesmo, um casal corria para atravessar a estrada, sob a chuva, à frente de um carro que não conseguia travar, e corria… a fuga quase mortal para a frente. É para aí que vamos?!? Então, porquê a pressa? Inspiro tão profundamente quanto posso, quero parar esta história onde não há vencedores, onde os lesionados proliferam e ninguém quer saber, na alucinação colectiva da jornada involuntária. Pego no comando, pressiono a pausa, inútil, este programa está viciado!