quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Às quartas


... Como nos cães,
tocados por seu dono,
vagueia todo o amigo na terra,
assim quisera eu minha palavra:
simples,
tímida nas pupilas,
com sílabas errantes de menino.

    Improvisar o mundo,
e todo o diáfano do mundo,
com a data encontrada no orvalho
e com o sopro tépido da mão...

    Pois o que vale é o real
escrito com a exaltação do real,
e com o sedimento aéreo
do coração que pulsa chamado por seu dono,
leve,
muito levemente
oh, poema.

Leopoldo Panero
(Trad.: José Bento)

O verdadeiro projecto para o país

Eu ando preocupado com o país e por isso sempre que o destino me proporciona a leitura de um artigo de jornal assinado por alguém que se denomina de Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade tudo com letra maiúscula eu não perco a oportunidade e posso não fazer mais nada durante o dia mas o artigo escrito pelo especialista eu tenho de o ler dê por onde der ainda para mais se o artigo tem como título Uma Nação Star Up e se logo para começo de conversa nos anuncia que é o nome de um projecto que vai ser lançado no nosso país e que uma nação start up é um grande desafio para Portugal porque o projecto consiste numa «verdadeira dimensão colaborativa de mobilização dos "actores da mudança"» dito assim com ênfase e panache e quem são pergunta o leitor esses "actores da mudança" na opinião do Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade e eu respondo porque o Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade foi muito claro neste ponto não foi claro em mais nenhum ponto mas neste ponto foi claro e então para ele os actores da mudança são precisamente e pela ordem que se segue os empresários os académicos e os empreendedores sem tirar nem pôr são estes e mais nenhuns é claro que isto me deixou a pensar como é que esta meia dúzia de tipos pode fazer a mudança se não incluir os trabalhadores que são aqueles que dão o corpo ao manifesto e que manifestamente são aqueles que ganham menos e pagam mais contudo isto é um problema que não interessa nada ao Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade mas isto foi só o começo do artigo as primeiras quatro linhas porque as restantes linhas é que explicam bem em que consiste o projecto start up o projecto que vai salvar Portugal e então uma pessoa fica a saber que esse projecto vai ter «efeitos de alavancagem na percepção da necessidade de reinventar a economia» que também vai «consolidar uma ideia de marca» que ainda vai «protagonizar novas soluções com novas respostas» que tem um «novo paradigma de desenvolvimento» que aposta numa «agenda de mudança» que está «centrado em novas ideias e novas soluções» e pergunta-me o leitor mas concretamente em que é que consistem essas novas ideias e essa nova agenda e essa alavancagem e por aí fora e eu respondo um momento que ainda estamos a meio do artigo e o Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade ainda não acabou de falar portanto retomando o que estava a dizer segundo o Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade nós temos de perceber que a «aposta nos factores dinâmicos de competitividade, numa lógica territorialmente equilibrada e com opções estratégicas claramente assumidas» é aquilo que constitui um «contributo central para a correcção das graves assimetrias sociais e regionais que se têm acentuado» é por isso que se torna óbvio ser necessário originar «um choque operacional capaz de produzir efeitos sistémicos ao nível do funcionamento das organizações empresariais» ora só assim se compreende que o «novo paradigma» radique «na capacidade de os resultados potenciados pela inovação e conhecimento serem capazes de induzir novas formas de integração social e territorial capazes [sic] de sustentar um equilíbrio global do sistema nacional» e isto é tanto mais evidente quanto é sobre este «desígnio que o start up Portugal se propõe estabelecer um novo contrato de confiança, dinamizar um novo projecto, promover uma nova marca» depois ler isto e felizmente que o destino me proporcionou o encontro com este Especialista em Estratégia Inovação e Competitividade de nome Jaime Quesado e que escreveu este artigo no Diário Económico no dia dezasseis de Novembro de dois mil e onze deixei de estar preocupado com o país porque não há nada como deixar o nosso futuro nas mão destes especialistas.

Zé Portugal

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Dom Quixote.

Nacos

«Se o leitor alguma vez foi rapaz deve recordar-se das preocupações que temos nessa fase da vida e de como elas não nos largam e se, até agora, ainda não tive motivo para referir as minhas, não quer dizer que não fossem companheiras constantes. A vida de um rapaz, tal como a vida de uma ave, não é o que em geral se pensa. Por exemplo, vejam-se os papa-amoras a empanturrarem-se, as felosas-assobiadeiras a satisfazerem a sua gula entre as amoras, as toutinegras-de-barrete-preto a baloiçarem nas roseiras bravas, todos em pânico a quererem engordar antes que o Verão acabe. Eu, pelo meu lado, estava sempre inquieto, não fosse o meu pai morrer como a minha mãe e deixar-me sem ninguém que cuidasse de mim, sem ninguém para me salvar da minha natureza impertinente, das minhas imitações, do meu medo dos desconhecidos na estrada ou nos bosques à noite, dos vagabundos, dos patifes, dos eremitas, dos homens que põem narizes de papelão para assustar os rapazinhos.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva

Para clicar


segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Uma fita assim-assim: «Nos Idos de Março», de George Clooney

Comentário de segunda

Alunos universitários de Aveiro e do Algarve passam fome, alunos do ensino básico e do secundário passam fome, polícias passam fome, pensionistas passam fome, desempregados passam fome... Estas são notícias que todos os dias nos chegam. De quem é a responsabilidade?

Ainda não faz parte da nossa cultura exigir o apuramento de responsabilidades, com consequências civis, da acção política. Mas, na realidade, a política é demasiado importante para que a responsabilidade dos seus actos se extinga com os resultados dos processos eleitorais. É demasiado fácil apagar as consequências das acções dos políticos e simultaneamente lavar as consciências com o designado julgamento eleitoral.
Não é de todo compreensível nem aceitável que, por exemplo, a nível profissional, actos de pequena negligência, com consequências limitadas, possam dar lugar a processos disciplinares e até a despedimentos e actos da maior gravidade que lesam milhões de pessoas passem impunes quanto à sua responsabilização civil.
É verdade que este é  um problema difícil porque nos obriga a pisar um território que está cheio de armadilhas, onde a fronteira entre o grosseiro justicialismo e a responsabilização ética, com consequências civis, não é fácil de encontrar, mas é um caminho que tem de ser trilhado. Penso que uma das causas, entre várias outras, da facilidade com que os povos são chamados a pagar — com dor, fome e miséria — os desvarios dos políticos é a impunidade de que eles gozam. 
E não é válido o argumento que co-responsabiliza os eleitores, dizendo que são eles que elegem os políticos. Não é válido, porque a conclusão omite uma premissa fundamental: quem os elege não o faz para que eles realizem as políticas que, na realidade, praticam; quem os elege, elege-os para que eles realizem as políticas que prometeram realizar. O mandato que lhes é conferido é apenas para que realizem as políticas prometidas e não outras. Os eleitores seriam, de facto, co-responsáveis se os políticos por eles eleitos cumprissem o que em campanha eleitoral anunciam. Mas isso não acontece. Os político prometem e mentem sem pudor e, quando atingem o poder, agem de modo muito diverso — em alguns casos de modo objectivamente oposto — ao que publicamente se haviam comprometido.
Esta impunidade não pode continuar, porque representa brincar com a vida de milhões de seres humanos. 

domingo, 27 de novembro de 2011

Pat Metheny

Pensamentos de domingo

«A lei é poderosa, porém, mais poderosa é a necessidade.»
Johann Goethe

«A necessidade é capaz de quebrar até o aço.»
Textos Judaicos

«Este método estóico de prover as nossas necessidades suprimindo os nossos desejos é como cortar os pés quando necessitamos de sapatos.»
Jonathan Swift
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editores

sábado, 26 de novembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema da crença na fiabilidade dos números

Um conto árabe.
Um homem queria assegurar-se de que depois da sua morte os seus três filhos saberiam encontrar um bom conselheiro.
Por isso deixou-lhes em testamento dezassete camelos com as seguintes instruções:
— Quero que o mais velho fique com metade dos camelos, o segundo com um terço e o mais novo com um nono.
Os filhos, à leitura do testamento, ficaram perplexos. Pediram conselho aos amigos. Estes disseram-lhes que vendessem os camelos e partilhassem o dinheiro segundo as proporções indicadas. Outros consideravam que o testamento não se podia executar e por conseguinte não tinha valor.
Por fim, encontraram um homem que, depois de reflectir, disse:
— É muito simples. Empresto-vos um camelo. Juntai-o aos outros dezassete. Dais ao mais velho metade dos dezoito camelos, isto é, nove camelos. Ao segundo dais um terço, isto é, seis camelos. O mais novo recebe um nono, isto é, dois camelos. No total, dá dezassete. Então devolvem-me o meu camelo e está feito.
Os três filhos tinham encontrado o melhor conselheiro possível. Pensa-se — mas não há a certeza — que o mantiveram muito tempo junto deles.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -5

A lei atribui ao conselho geral o lugar cimeiro na hierarquia do actual modelo de gestão e administração das escolas. 
É-lhe atribuído o poder de definir as linhas orientadoras da actividade da escola, nomeadamente a nível da elaboração do orçamento, da acção social escolar, da participação em actividades pedagógicas, científicas, culturais e desportivas. É-lhe atribuído o poder de aprovar ou não os documentos mais importantes para o funcionamento de um estabelecimento de ensino: o projecto educativo (cuja execução também deve acompanhar e avaliar), o regulamento interno, o plano anual de actividades e o relatório final sobre a sua execução, as propostas de contratos de autonomia e o relatório de contas de gerência. Ainda lhe é atribuído o poder de apreciar os resultados do processo de auto-avaliação, de se pronunciar sobre os critérios de organização dos horários, de promover o relacionamento com a comunidade educativa e de acompanhar a acção dos demais órgãos de administração e gestão da escola.
Para além de tudo isto, o conselho geral tem o poder de eleger o director — de o eleger, de o demitir e de o reconduzir ou não.
Formalmente tem todos estes poderes. Mas tem-nos, de facto? Isto é, na realidade, tem condições para os exercer? Não tem. Por diversas razões. Vejamos duas de diferente natureza.

1. Ausência de condições objectivas.
A maioria dos membros do conselho geral tem uma actividade profissional desligada do ensino. Por razões óbvias, esta maioria necessitaria de condições de tempo para poder dedicar-se minimamente ao estudo e preparação da multiplicidade de documentos acima referidos, a fim de se sentir capacitada a formular opinião e a elaborar propostas fundamentadas. Ora, como é natural, as actividades profissionais que essas pessoas desenvolvem não lhes dão essas condições de tempo. Só roubando várias horas ao legítimo direito ao descanso é que esse tempo poderia surgir. Compreensivelmente, muitos não o fazem, do que resulta uma manifesta incapacidade de exercerem os poderes conferidos por lei.
Mesmo os professores que pertencem ao conselho geral o máximo a que poderão ter direito, se o regulamento interno da escola o contemplar, é a uma redução na componente não lectiva, que, todavia, em nada lhes reduz o tempo que dedicam ao trabalho de leccionação. Isto significa que mesmo quem é profissional do ensino tem objectivas limitações para cumprir adequadamente a panóplia de competências que lhe são atribuídas, enquanto conselheiro geral.
Adicionalmente, o conselho geral não possui um serviço de secretariado que o assessore, de modo a ter acesso fácil à informação relevante que chega à escola (desde decretos-lei a simples ofícios e circulares) e à informação que é produzida dentro da própria escola. Sem informação adequada e completa não é possível o exercício pleno das funções que lhe estão destinadas, nomeadamente o de «acompanhar a acção dos demais órgãos de administração e gestão da escola.»
Há, pois, um enorme desequilíbrio entre as responsabilidades que formalmente são atribuídas ao conselho geral e as condições reais que lhe são proporcionadas para as cumprir.

2. Ausência de condições subjectivas.
A composição, as competências e a posição hierárquica que o conselho geral ocupa no organograma do regime de administração e gestão das escolas geram, no seu conjunto, graves e inultrapassáveis situações de natureza contraditória e conflituante.
O poder de eleger, demitir ou reconduzir; o direito a votar a favor ou contra e o exercício da crítica têm de ser realizados de modo livre. Não podem existir condicionamentos — seja por receios de represálias, seja por defesa de interesses pessoais ou profissionais. Ora, a composição do conselho geral e o seu modo de funcionamento são favoráveis à ocorrência de situações que configuram esse tipo de condicionamento, e que, subjectivamente, podem colocar em causa a liberdade de cada um falar e agir segundo a sua consciência.
Vejamos. Nas reuniões do conselho geral, participa o director, ainda que não tenha direito a voto. O director está presente, intervém sempre que o deseja, apresenta propostas, e ouve o que os conselheiros dizem. Os conselheiros, pelas funções que a lei lhes determina, devem escrutinar o exercício dos vários órgãos da escola, nomeadamente a acção do director. Ora, esse escrutínio, para ser sério, não pode ser condicionado. Todavia, foram criadas, pela legislação, as condições para que esse exercício possa ser fortemente condicionado.
Na verdade, os funcionários e os professores que são membros do conselho geral se, por um lado, são membros de um órgão que, no organograma do regime de administração e gestão das escolas, ocupa o lugar cimeiro, por outro lado, têm, do ponto de vista administrativo, o director como seu superior hierárquico, a quem devem obediência funcional. Esta circunstância, só por si, é um potencial factor de constrangimento, em particular, no que diz respeito a funcionários auxiliares e administrativos. Quem se habituou, dia a dia, a receber e a cumprir ordens de serviço do director é natural que se sinta pouco confortável numa situação em que tem a obrigação de escrutinar, através da inquirição e da crítica, a acção daquele a quem diariamente obedece.
Para além disto, o director é também o responsável máximo pela avaliação do desempenho dos funcionários e dos professores. Avaliação do desempenho que tem consequências a nível da progressão na carreira e que pode também ter consequências a nível disciplinar.
Ambas as circunstâncias que envolvem o director (superior hierárquico e responsável pela avaliação) são demasiado ponderosas para que se possa garantir que não condicionam o comportamento daqueles que têm a obrigação, entre outras, de submeter a exame crítico a sua acção. Exame que pode conduzir à sua exoneração ou à sua não recondução.
Inversamente, também se abre campo a que, em período pré-eleitoral, o director seja tentado a ganhar votos, aliciando representantes de funcionários e de professores no conselho geral, através da atribuição de privilégios de variada ordem.

Estamos, pois, perante um terreno demasiado pantanoso onde tudo é possível. Confronte-se agora este processo com a eleição democrática e universal dos anteriores órgãos directivos e veja-se de que lado está a maior transparência.

Continua na próxima semana.

Ontem: Greve Geral e Marcha da Indignação

Uma cada vez mais forte e determinada contestação social, aqui, na Europa e no Mundo, é o único caminho que pode ser seguido por quem é, sistematicamente, objecto de espoliação.
O modelo económico-financeiro dominante está profundamente errado. É um imperativo ético transformá-lo.

Momentos da marcha que partiu do Marquês de Pombal, no dia da Greve Geral.




quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Às quartas

COMPANHEIRA

Não temas
Quanto não perdi para sempre
Sequer conheci ou sonhei
Para te poder reconhecer
E ao lembrar-me que eras sonhada
Rasguei todos os papéis onde rabisquei
Cavalguei seres alados na planície interior
Acelerei a alma enquanto houve alimento
E ar

E pão
E estrelas
Alimentava-me da doce memória de que existirias
Naquela cabana à beira do riacho
Que dividia a província distante
Já o comboio silvava perto do apeadeiro
No sopé das montanhas
Na mais alta estavam os pais
Abraçados à bandeira eterna
Dos resistentes ao invasor
Sabemos que oferecemos flores silvestres
Enquanto as balas estilhaçavam urzes
E todos os arbustos das encostas
Morreríamos abraçados nessa noite
Era quase alvorada
Não o sabíamos

Pois todos os galos haviam morrido

Álvaro José Ferreira Gomes

Para clicar

Amanhã é dia de greve geral. E depois de amanhã?

Amanhã farei greve. Dito isto, acrescento o seguinte. 
Há dias, no Fórum da TSF, ouvi Carvalho da Silva explicar por que razão devemos fazer greve. Se eu tivesse dúvidas sobre a minha adesão à greve geral, depois de ouvir o secretário-geral da CGTP, tê-las-ia dissipado e teria decido não aderir. A única razão por ele aduzida para justificar a greve geral foi: «É preciso manifestar o nosso repúdio pela política que está a ser seguida pelo actual governo». Durante quase duas horas de participação no programa, em que respondeu a perguntas do jornalista de serviço e dos ouvintes, Carvalho da Silva não acrescentou mais nada. Isto é, para Carvalho da Silva a greve só tem mesmo uma serventia: evidenciar desagrado, mostrar discordância em relação à política do governo. Carvalho da Silva não disse uma palavra sobre o futuro, sobre as perspectivas e as expectativas que tinha sobre a continuação e o aprofundamento da luta contra as medidas governamentais. Não o disse desta vez como nunca o disse em vezes anteriores. E como não o voltará a dizer no dia seguinte à greve geral. Ouviremos o que sempre ouvimos nestas ocasiões, nem mais nem menos. Apesar de vivermos um momento gravíssimo, sem paralelo nas últimas décadas, a resposta sindical é a mesma e o desenlace da luta sindical será o mesmo.

Provavelmente, seria aconselhável que os dirigentes da CGTP e do PCP se interrogassem e se inquietassem com os recorrentes elogios que, de modo unânime, os banqueiros, a CIP, o CDS, o PSD, o PS e a generalidade dos comentadores de direita lhes dirigem, a propósito da absoluta garantia de que, com a Intersindical e com o Partido Comunista, tudo está sob controlo e nada de imprevisto acontecerá que ponha em perigo o statu quo. Na semana passada, o presidente da CIP afirmou, sem rodeios, que a realização da greve geral até poderia ser benéfica, porque ela teria um efeito de escape que aliviaria as tensões, e, no dia seguinte, o clima social estaria melhor para todos (cf. entrevista ao jornalista José Gomes Ferreira, SIC Notícias, programa «Negócios da Semana», 16/11/11).
Na verdade, o absoluto legalismo, a doentia obsessão pelo «bom comportamento» e o muito delimitado campo em que o PCP e a CGTP concebem o desenrolar dos conflitos sociais constituem, para o poder dominante, uma garantia de que nada de verdadeiramente importante é posto em causa. O PCP e a CGTP idealizam rupturas e mudanças de poder sem que um «prato se parta». O ininterrupto ciclo de «negociação-manifestação-greves de limitada duração-negociação-manifestação-greves de...» esgota os seus instrumentos reivindicativos e de contestação. É por isso que, para Carvalho da Silva, nunca há o dia seguinte à greve. Para ele, a greve refere-se ao pretérito, não ao futuro.

Felizmente, os movimentos sociais não são sempre encarceráveis nos espartilhos conceptuais de ninguém. Porque tenho esta convicção, farei greve amanhã, a pensar no dia seguinte.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Dom Quixote

Nacos

«Era meio-dia e um quarto e sol forte, quando o homem soube que a mulher morrera. Foi assim de repente, com todas as pontadas ou tiros de emboscada.
Ele estava sentado numa esplanada em Santos, e chegaram uma rapariga e um engenheiro, que era uma espécie de noivo da rapariga. O engenheiro telefonara meia hora antes a dizer: «A Teresa e eu queremos ver-te com muita urgência.» O homem notara uma solenidade na voz que lhe telefonara, mas pensando que quando muito o outro estaria mais engenheiro do que da última vez.
Tinham combinado encontro na esplanada em frente do Jardim de Santos. Sentado aí, ele observou o engenheiro e a rapariga avançando, ao sol de um dia de meio-dia e um quarto muito forte. De cada vez que o homem via a rapariga pensava na irmã mais velha dela, pensava na outra até por causa desta, cuja consciência já não tinha as dores de saber coisas como o meu azar foi não ser feia ou então bonita doutro modo.
O homem levantou-se quando o par chegou junto das mesas, e viu que a irmã mais nova da mulher não sabia o que lhe havia de dizer. «Está tudo solene hoje», pensou ele. «São Miguel Arcanjo deve ter partido um bule ao pequeno-almoço.» Nessa altura viu uma lágrima, aparecendo, vinda de trás dos óculos pretos que tapavam os olhos da rapariga. Estendeu rapidamente a mão e tirou-lhe os óculos. Então ele viu as lágrimas todas e a vermelhidão de muitas outras antes, e perguntou: «O que foi?» «A Zana morreu», disse a Teresa.
O homem olhou para a calçada, viu um bilhete de carro eléctrico caído entre duas pedras de basalto. Naquele momento não sentia ainda nada de especial. Só percebeu bem a ilusão dessa insensibilidade anos e anos decorridos; a imagem exacta do rectângulo encarnado entre duas pedras pretas permanecia nele tão inalterada como quando, nessa manhã de dia com sol forte, olhando para o engenheiro, viu também e ainda a imagem do bocadinho de papel caído no basalto.»
Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Dom Quixote

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Dia 24 - Greve Geral com manifestação

Comentário de segunda

Li que o nosso ministro da Economia «convocou a nata da comunidade empresarial para dois encontros». A referida nata é constituída pelos 50 maiores empresários, «que vão indicar as 10 medidas mais urgentes para relançar a economia» (Expresso - Economia, 19/11/11). 
A minha perplexidade é a seguinte: foi esta «nata», numa empenhada parceria com a «nata» do PS de Sócrates, que conduziu o país à situação que actualmente vivemos; não compreendo, por isso, que contributo positivo o ministro da Economia espera que essa «nata» preste ao país, no relançamento da economia. 
Foi esta nata que afundou a nossa economia. Foi esta nata que se endividou e endividou o país até à medula. A dívida privada é, como se sabe, muito superior à dívida pública, e, se o exagero dessa dívida não é da responsabilidade das famílias — como vários estudos o têm demonstrado, com clareza —, ela é da responsabilidade das empresas (e dos bancos, que sem critério competente a permitiram). Que rendibilidade produziram os empréstimos, supostamente contraídos para investimento nas empresas? Para onde foi esse dinheiro? Foi mal aplicado e/ou foi mal gerido? Seja qual for a resposta, a responsabilidade do desastre é desta «nata» empresarial — não é certamente dos profissionais que são dirigidos por essa «nata»; esses profissionais, esses trabalhadores, quando mudam de país e são dirigidos por outro género de empresários tornam-se co-responsáveis pela obtenção de excelentes resultados. O problema está pois na nossa «nata» empresarial, precisamente aquela que foi convidada pelo ministro da Economia para lhe dar conselhos.
É verdade que «nata» também é sinónimo de gordura — talvez seja este o verdadeiro significado do termo, quando aplicado aos nossos empresários.

Durante a semana passada, foi dado relevo noticioso a um estudo da Universidade do Minho sobre os resultados da reforma da Segurança Social, operada por Sócrates e Vieira da Silva. Apesar de não constituir uma novidade, foi enfatizado o facto de, dentro de vinte a trinta anos, as reformas ficarem reduzidas a cerca de 60% do salário. Isto é, milhares de pensionistas deixarão de ter condições para usufruir de uma vida digna.
Em 2007, quando esta reforma foi realizada, algumas vozes (poucas) alertaram para esta situação, mas, na altura, como prevalecia sobre tudo e sobre todos a tirania das mentiras de Sócrates, o que foi profusa e descaradamente propagandeado foi que o governo tinha conseguido dar sustentabilidade à Segurança Social. Na realidade deu, porque não pagando reformas a Segurança Social não pode falir, mas onde esteve e onde está o mérito disso, se o resultado é a miserabilização dos pensionistas?
O empobrecimento que Coelho agora preconiza como remédio para o país é apenas o aprofundamento da política iniciada por Sócrates. 

domingo, 20 de novembro de 2011

Dizzy Reece

Pensamentos de domingo

«No início você toma uma bebida, depois a bebida toma uma bebida, depois a bebida toma-o a si.»
Scott Fitzgerald

«Se o louco persistisse na sua loucura tornar-se-ia insensato.»
William Blake

«Sou a favor do costume de se beijar as mãos de uma mulher quando somos apresentados. Afinal, é preciso começar por algum lado.»
Sacha Guitry
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 19 de novembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico


A tranquilidade da sabedoria

Um homem — conta uma tradição chinesa — caminhava lentamente à chuva.
Um outro que ia a passar depressa perguntou-lhe:
— Porque não andas mais depressa?
— Lá à frente também chove — respondeu o homem.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -4

Uma das competências do conselho geral é a de «eleger o director». A forma como, na lei (Decreto-Lei n.º 75/2008 e Portaria n.º 604/2008), essa eleição está concebida constitui mais um desgraçado exemplo de como ideias mal pensadas geram resultados desastrosos — Sócrates e Rodrigues foram, como se sabe, exímios na arte de mal pensar e de mal legislar, e esta lei, de que ambos são responsáveis, ilustra-o bem.
Vejamos como é feita a eleição do director pelo conselho geral.
Antes de ser realizada a eleição é necessário desenvolver um processo concursal. Qual é o objectivo do processo concursal? A Portaria que regulamenta este processo é muito clara: «o processo concursal procura apurar qual dos candidatos se encontra em melhores condições para exercer o cargo de director». Sublinho: «apurar qual dos candidatos se encontra em melhores condições».
Para ser realizado esse apuramento, está estipulado que o conselho geral mandate a sua comissão permanente ou crie uma comissão especializada para que esta elabore um relatório de avaliação das candidaturas existentes. Esse relatório é feito a partir da avaliação de três elementos: do curriculum vitae de cada candidato; do projecto de intervenção na escola, que cada um deles tem de apresentar; e da entrevista individual realizada com os candidatos.
Um pormenor importante: «os métodos» [sic] de avaliação das candidaturas, são aprovados pelo conselho geral. Só depois dessa aprovação, o processo de eleição é desencadeado, e a comissão, após a análise dos elementos acima referidos, elabora o relatório avaliativo.
Feito o relatório, o conselho geral aprecia-o e decide uma de duas coisas: se considerar o relatório esclarecedor, proceder à votação; ou, se considerar que o relatório não é suficientemente esclarecedor, proceder complementarmente a uma audição, em plenário, de cada um dos candidatos, e só depois realizar a votação.
Basicamente é este o processo. Vamos agora aos paradoxos e aos dislates.

1. Como vimos, o processo que a comissão deve desenvolver tem por objectivo «apurar qual dos candidatos se encontra em melhores condições». Mas, curiosamente, a Portaria que diz isto, diz também o seguinte: «a comissão não pode, no relatório, proceder à seriação dos candidatos» (Artigo 7.º). A comissão tem, pois, de avaliar qual é o candidato em melhores condições para ser director, mas não pode colocar os candidatos numa série, numa lista, isto é, uns à frente de outros! Ora, o problema comezinho que se levanta é este: se os candidatos forem dois (o que acontece em muitos casos), como é que se diz qual é o candidato em melhores condições para o exercício do cargo, sem o colocar, inevitavelmente e por consequência, à frente do outro que se considera não possuir tão boas condições? Até hoje, ainda não compreendi nem consegui que alguém me explicasse como é que isto se faz.
Mas, se forem mais do que dois candidatos, também não se compreende qual é o problema da seriação, se aquilo que se pretende é que a comissão apure sempre qual candidato possui as melhores condições. Mas adiante.

2. Olhando-se para o que a legislação estipula, fica-se com uma dúvida insanável: o que é que verdadeiramente se pretende? Pretende-se que a escolha do director seja feita por concurso ou por eleição? As duas coisas, em simultâneo, é que não se pode pretender. Se a comissão apura, segundo os critérios definidos pelo conselho geral, «qual dos candidatos está em melhores condições» e escreve-o no relatório, o que pode, com seriedade, o conselho geral fazer? Se o conselho geral prescinde de ouvir, em plenário, os candidatos, porque considera que o relatório cumpriu e aplicou os critérios enunciados e porque considera que a conclusão a que o relatório chega é clara e credível, só pode, para ser coerente consigo próprio e para que haja seriedade no processo, votar no candidato indicado como aquele que reúne as melhores condições. Não resta alternativa.

3. Na verdade, se, por lei, se atribui à comissão a incumbência de «avaliar» as candidaturas para «apurar o candidato que reúne as melhores condições» para o exercício do cargo, segundo critérios definidos pelo conselho geral, não se está a atribuir a essa comissão uma mera função de validar as candidaturas, isto é, de apenas verificar se os candidatos possuem ou não os pré-requisitos legais para se poderem candidatar. Validar e avaliar candidaturas são, obviamente, actos diferentes e com consequências diferentes.
Deste modo, não pode acontecer que o relatório, em resultado de uma avaliação criteriosa, apure o candidato que apresenta as melhores condições para a função e que o conselho geral considere que a comissão aplicou correctamente os critérios definidos pelo próprio conselho e, depois, na votação, ser eleito outro candidato que não aquele que obteve a melhor avaliação. Se isto acontece, é porque há outros critérios, neste caso, ocultos, que levam a uma decisão diferente. E, neste caso, não há ponta de seriedade no processo — quer em relação à elaboração dos critérios, que depois não são respeitados, quer em relação ao trabalho da comissão que elabora o relatório. (Lamentavelmente, são múltiplos os casos em que esta situação ocorreu, por causa dos mais variados e escondidos interesses — dos pessoais aos partidários).

4. Concluindo: se há um verdadeiro processo concursal, não há uma verdadeira eleição; se há uma eleição, não pode haver processo concursal. Mas Sócrates e Rodrigues acharam que sim, que os hibridismos grosseiros eram a solução. Segundo parece, Crato também acha o mesmo...

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Quinta da Música - Chopin

Trechos - Hervé Juvin

«No seu desenvolvimento, a cultura da mundialização é a primeira que realiza neste ponto a associação do poder e do dinheiro. E é a primeira que tem uma relação com a economia na medida também que ela concorre a fazer do modelo de crescimento ilimitado uma força suicidária irresistível [...]
A nossa cultura é a do crescimento ilimitado e está assente na nossa todo-poderosa técnica, autor de ruptura sem precedentes com a natureza, uma vez que ela nos coloca numa situação de produzir a natureza. Ensina a nunca mais perguntar porquê. A cultura era o meio de voltar atrás, de julgar e de saber dizer não. A cultura-mundo dissolve as questões na acção, interdita o recuo e o julgamento e resolve-se numa imensa aquiescência ao crescimento, ao mercado e às suas obras.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovestsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Às quartas

AR LIVRE

Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
— a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!

Edmundo de Bettencourt

Corpos especiais

Portugal é um país de patuscadas e cada um de nós é um patusco em potência. Há dias pude observar como alguns dos nossos militares são patuscos e não me refiro às esteatomatosas barrigas que vários deles  ostentam e que me fazem imaginar o que aconteceria a eles e a nós se um dia tivéssemos de entrar numa guerra refiro-me só às declarações públicas que ouvi de um coronel com a voz a fugir para o grosso que falava em nome de uma associação de oficiais e que disse que os militares apesar de serem funcionários públicos não são funcionários públicos porque são um corpo especial e como corpo especial têm de ter um tratamento especial e que «portantos» têm de ver as carreiras descongeladas para poderem ser promovidos. Depois de ouvir o coronel lembrei-me de que os médicos também são um corpo especial da função pública e de que os professores também são um corpo especial da função pública e de que os juízes também são um corpo especial da função pública e assim de repente não me consigo recordar se ainda haverá mais algum corpo especial da função pública o que eu sei é que o coronel é um patusco e que deve ser um daqueles militares que cumpre com denodo a função de serem os primeiros a defender a pátria de serem os primeiros a estar ao serviço da nação de serem os primeiros dispostos a sofrer pela país e até de serem os primeiros dispostos a dar a vida pela nossa independência mas percebi que sendo ele capaz de todos estes sacrifícios do que não é capaz é de deixar de engalinhar com a falta da promoçãozinha isto independentemente de todos os outros funcionários públicos sendo ou não sendo corpos especiais também estarem há anos sem ver a promoçãozinha mas isso já não interessa nada ao coronel com a voz a fugir para o grosso porque eles militares é que são os verdadeiros corpos especiais ainda que muito longe dos outros daqueles da danone.

Zé Portugal

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Dom Quixote

Nacos

«Numa pessoa — qualquer pessoa, desde que vasculhada — a tristeza é medonha enquanto se não descobre o que tristeza é: cavalos-vapor, aos mil, de alegria comprimida injustamente. Palavras são sinais, não mais. Mãos agarram mas não têm. Ninguém é macambúzio ou obstinado ou agressor gatuno por opção. É que há paredes duras como pinho braceado, e a cinza do ter que agir, estopadas entretanto. E então são bebedeiras de afazeres ou jogatana, turras enfim. Que isso de andar no mundo feito gente não é coisa para bicho (e o contrário também vale, como expressão do mesmo). Insiste-se em continuar vivendo sempre à espera de. Para alguns vem. A descoberta é como um lince que resvala pelo cedro abaixo ao romper da noite.»
Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Dom Quixote

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Uma fita com interesse: «Isto não é um filme», de Jafar Panahi

Comentário de segunda

1. Em final do mês de Outubro, todos ouvimos Passos Coelho afirmar que era preciso fazer ajustamentos ao memorando assinado com a troika, porque não havia dinheiro para financiar as empresas públicas. Explicou que esse aspecto não tinha sido previsto no acordo assinado, o que tornava inevitável que, durante o mês de Novembro, fossem feitos ajustamentos ao memorando.
Há três dias, o presidente do Eurogrupo, Jean Claude Juncker, veio a Portugal. Durante a visita, disse aos jornalistas, com absoluta clareza e sem margem para dúvidas: «Não podem existir ajustamentos ao memorando nem haverá mais dinheiro para Portugal».
Horas depois, Passos Coelho, com o mesmo facies e com o mesmo à-vontade com que tinha feito as declarações em Outubro, informou-nos: «nem pensar em fazer ajustamentos e menos ainda pensar em pedir mais dinheiro.»
Não conheço nenhum político que chegue aos tornozelos de Passos Coelho, em matéria de dizer e desdizer. Não tenho memória de ter encontrado, em trinta e sete anos de democracia, um político que conseguisse afirmar um coisa e o seu contrário, com tanta naturalidade e em tão curtos espaços de tempo, como Passos Coelho, recorrentemente, o faz — nem Otelo Saraiva de Carvalho, nos tempos áureos do PREC, conseguia ser tão rápido a mudar de ideias (isso acontecia, principalmente, quando regressava de uma viagem ao estrangeiro...).
Não consigo imaginar o que Passos Coelho pensa de si próprio nem como se auto-observa, enquanto protagonista de discursos com conteúdos objectivamente contraditórios, é que em menos de seis meses, Coelho bateu os recordes que havia para bater neste domínio. Quando se observa ao espelho, quem é que ele vê: vê o Passos que falou hoje, ou o que falou ontem, ou o que falou há dois dias, ou o que falou há três semanas?
É este jovem sem identidade (ou com excesso de identidades) que pretende tirar o país da crise?
Pobre Portugal, que não consegue encontrar líderes minimamente equilibrados.

2. Ouvi da boca de uma ministra deste Governo uma afirmação verdadeira: «Os portugueses têm razão para duvidar da Justiça». Foi a ministra da pasta que o disse.

domingo, 13 de novembro de 2011

Penguin Cafe Orchestra

Pensamentos de domingo

«O dinheiro é como o adubo, não é bom se não for distribuído.»
Francis Bacon
 
«Disseram que o amor pelo dinheiro é a raiz de todos os males. O mesmo se pode dizer da falta de dinheiro.»
Samuel Butler
 
«Essa história de que o dinheiro não dá felicidade é um boato espalhado pelos ricos para que os pobres não tenham muita inveja deles.»
Jacinto Benavente y Martinez
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 12 de novembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema das evidências
Uma curta história zen mostra um homem que desejava ardentemente a riqueza. Toda a a sua vida só pensou em dinheiro, só rezava para obter dinheiro.
Num dia de Inverno, de regresso do templo, viu um grande porta-moedas metido no gelo do caminho. Pensando que as suas preces tinham finalmente sido atendidas, tentou apoderar-se do porta-moedas, sem sucesso. Preso no gelo, o objecto resistia. Então o homem urinou sobre o porta-moedas para fundir o gelo.
E acordou numa cama molhada.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

Um retrato de Cavaco Silva



O agradecimento ao António Magueija.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -3

Terminei o texto da semana passada referindo algumas ideias que estão na base da concepção errada do órgão designado por conselho geral. Deixei para hoje a referência à ideia que é, na minha opinião, uma das mais perniciosas, pelos efeitos que tem e pelo que politicamente representa.

A natureza, a composição e as funções do órgão conselho geral são o fruto particular de duas noções sobrepostas: por um lado, a noção que resulta da aceitação deslumbrada e acrítica do paradigma conceptual da chamada gestão empresarial; por outro lado, a noção que resulta da necessidade de se aparentar democraticidade, neste caso, democraticidade na gestão das escolas. 
Sócrates e Rodrigues quiseram dar corpo a este hibridismo naïf, não só na política educativa mas em toda a sua acção governativa — estes hibridismos intelectualmente grosseiros e pragmaticamente incompetentes aparecem sempre quando não há um pensamento coerente nem  convicções fundamentadas. 
As características de que se reveste o conselho geral é um exemplo disso. Pretendeu-se que este órgão fosse, em simultâneo, duas coisas contraditórias:

i) à semelhança de uma empresa, pretendeu-se que o conselho geral fosse um conselho de administração, atribuindo-se-lhe a definição das linhas estratégicas da escola — mimetizando-se as competências do conselho de administração das grandes empresas. E do mesmo modo que, nas empresas, essas linhas orientadoras são entregues ao CEO, para este as concretizar, no caso das escolas, são entregues ao director, que tem idêntica incumbência;

ii) por outro lado, para salvaguardar a imagem (pseudo) democrática do modelo de gestão, pretendeu-se que o conselho geral fosse, ao mesmo tempo, algo de semelhante a um pequeno parlamento. A sua composição traduz essa preocupação de preservar publicamente a imagem de democraticidade. Por isso, nela há lugar previsto para toda gente, e parte desses lugares até é preenchida por eleição, segundo o método D'Hont — o que «garantiria», na cabeça dos seus mentores, a aparência democrática do órgão. Desta forma, evitar-se-ia a acusação de existirem concepções autoritárias na elaboração do modelo.

Todavia, amálgamas destas nunca podem resultar bem. Na verdade (e para além da errada concepção que equipara uma escola a uma empresa), o que se passa é que o conselho geral nem é um conselho de administração — porque a (natural) incapacidade, por falta de formação, de grande parte dos seus membros impede que o órgão funcione, no seu todo, como um verdadeiro conselho (ao contrário do que acontece num conselho de administração de uma empresa, que é composto exclusivamente por elementos com formação e experiência adequadas) — nem é um parlamento democraticamente eleito, porque só uma parte o é — a outra parte é nomeada e cooptada.
O conselho geral é pois um órgão estruturalmente incompetente, seja qual for o ponto de vista. Naturalmente, podem existir casos em que, devido à qualidade circunstancial da maioria dos seus membros, o conselho geral trabalhe bem, mas isso deve-se a uma particularidade excepcional desta ou daquela escola e não à concepção do órgão, que é aquilo que produz a regra.

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quinta da Música - Benjamin Britten

Trechos - Hervé Juvin

«O que nós observamos, depois de tantos anos, é um movimento incessante de uniformização, de laminagem das culturas e das civilizações pelo projecto liberal, economista e individualista — o projecto do totalitarismo suave do enriquecimento e da separação do indivíduo do todo colectivo, condição do crescimento económico que se alimenta tão bem do infortúnio individual... É, sob o exterior brilhante do apelo universal, a laminagem sistemática de toda a resistência à desconexão dos indivíduos com o colectivo, que faz deles, sob a égide dos direitos do homem, clones adequados, mobilizáveis, permutáveis, convencidos que o mundo lhes pertence e que se divertem bem.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Para clicar

Mentir deliberadamente

Depois de, há dias, ter afirmado que o Governo estava a avaliar a proposta do PS (pagamento, em 2012, de pelo menos um dos subsídios aos funcionários públicos e aos pensionistas), Miguel Relvas veio ontem afirmar, de modo peremptório e arrogante, que essa hipótese era evidentemente impossível de se concretizar. Acrescentou, em tom acusatório, que o PS tinha obrigação de saber dessa impossibilidade, porque tinha assinado o memorando com a troika, em que se exigia que, no próximo ano, o ajustamento fosse feito em dois terços pelo lado da despesa e em um terço pelo lado da receita. E é este o requisito do memorando que, segundo Relvas, obriga à supressão dos dois subsídios.
Faço o esforço de ignorar o ar e o tom das declarações deste ministro, mas não posso ignorar a desonestidade política que ele protagoniza e o modo escurril como argumenta. Se a justificação da alegada inevitabilidade de supressão dos dois subsídios reside na cláusula do memorando que obriga ao corte de dois terços na despesa, é necessário então lembrar a este governante que o PSD e, em particular, o seu líder andaram a mentir deliberadamente aos portugueses antes e durante a última campanha eleitoral. Mentiram e enganaram os eleitores — e sabiam que o estavam a fazer — quando lhes disseram, quando lhes prometeram que não cortariam os subsídios. Se, na realidade, é a referida cláusula do memorando que obriga a esses cortes, Passos Coelho e todo o PSD sabiam que teriam de fazer esses cortes, quando prometeram que não os fariam, porque, nessa altura, também eles já tinham assinado esse mesmo memorando. Na verdade, o memorando não foi assinado apenas pelo PS, foi assinado também pelo PSD e pelo CDS. Todos eles são igualmente responsáveis pelo seu conteúdo e todos eles são e eram conhecedores desse conteúdo aquando da campanha eleitoral.
De forma atabalhoada, como é sua característica, Relvas confessou que o PSD mentiu aos portugueses. E confessou que essa mentira foi deliberada.

Às quartas

VIVO ESTOU NO SONO

Habito
Nas grutas
Do sono

       Mas não o desvendo

Ouço
A sombra
Da água

      Mas não a mereço

Invoco
O enigma
Do branco

     Mas não o entendo.

Casimiro de Brito

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Bonecos... sem palavras

Quino, Bem, Obrigado e Você?, Pub. Dom Quixote
Para ampliar, clicar na imagem

Para clicar


Nacos

«Havia um corpo fortalecido à força, uma cidade ao pé do mar e uma revolta-interrogação: estes três dados formam de súbito unidade em busca da unificação maior, por descoberta. Lisboa com seus bêbados e prostitutas compunha a música antiquíssima ao ritmo da qual dançado sou —por ter ali aberto os olhos à dor e à alegria. Eis-me (uma vez mais) no limiar do gesto sem passado nem futuro a que posso chamar peão branco na quarta casa do rei.
Rasgada, no infinito do possível, a porta duma abertura clássica — Ruy Lopez, digamos, por hipótese — retomo a posição coabitaste com milhões de companheiros, alguns talvez leitores. A partida desenrola-se, Neandertal e andando; o jogo, esse, define-se pela translúcida complicação de não ter princípio, meio ou fim. Quando um tipo cai nele, descobre como lá esteve, estará até mais não. Oh tempo e mortes no teu meio, eu quero é rir. Aliviadamente.»
Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Pub. Dom Quixote.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Uma fita boa: «Pater», de Alain Cavalier

Para clicar


Comentário de segunda

1. Cavaco Silva, Passos Coelho, ministros, vários deputados e múltiplos comentadores continuam a insistir na ideia de que nos devemos mostrar radicalmente diferentes dos gregos, para depois sermos recompensados por bom comportamento. 
Simultaneamente, as mesmas vozes também dizem que o problema das dívidas soberanas não é um problema deste ou daquele país, mas de toda a União Europeia, e, desta forma, só uma resposta de âmbito europeu poderá ultrapassar a grave situação que estamos a viver.
Para além da manifesta grosseria política, que é pretender marginalizar a Grécia, e da objectiva falta de solidariedade, que essa atitude revela (solidariedade que curiosamente reclamamos dos outros para connosco), há, nos dois discursos, uma descarada incoerência: porque, se o problema é europeu, então, necessariamente todos somos gregos; se o problema é só grego, então, já não é europeu. Não se pode querer jogar em dois tabuleiros que se contradizem. Mas este comportamento dúbio, servil e interesseiro é o comportamento típico dos políticos portugueses. E, neste matéria, Passos Coelho é modelar, para nosso desconforto e para nosso prejuízo.

2. As domésticas encenações políticas impressionam pelo amadorismo que evidenciam. O episódio, agora em desenvolvimento, à volta da supressão, em 2012 e 2013, dos dois subsídios dos profissionais do Estado e dos pensionista é o mais recente exemplo disso. Aquilo que até há pouco tempo era uma absoluta necessidade sem alternativa — ou, mais precisamente, cuja única alternativa era despedir 50 a 100 mil funcionários públicos — passou a ser algo que já pode ser repensado, apenas porque o líder do PS (a troco de nada, segundo as palavras do próprio) pediu que o fosse — recorde-se que, há dias, quando Cavaco Silva mostrou discordância com a medida, Passos reafirmou que os subsídios tinham mesmo de ser cortados e que não havia outro modo de conseguirmos cumprir os compromissos com os nossos credores.
Estes momentos de magia política surpreendem duplamente: primeiro, pelo seu carácter fúfio; segundo, porque, os protagonistas parecem convencidos sobre a eficácia da prestidigitação. O processo mágico consiste no seguinte: apesar da gravidade do momento, todos deverão sentir-se satisfeitos, porque todos ficam a ganhar. O Governo, porque mostra o seu lado compreensivo (em lugar de tirar dois subsídios mostra-se disponível para tirar apenas um); o PS, porque consegue que o Governo recue e, assim, por sua iniciativa é amenizado o sofrimento dos funcionários públicos e pensionistas; e estes, por fim, deverão sentir-se gratos pela compreensão governamental e pela solidariedade e iniciativa dos socialistas.
Ou seja, os trabalhadores do Estado terão:
a) em 2012, e pelo segundo ano consecutivo, não apenas as carreiras e os salários congelados, como, grande parte deles, menos 5 a 10% do vencimento mensal;
b) ainda em 2011, a redução, em quase metade, do subsídio de Natal;
c) em 2012 e 2013, carreiras e salários congelados, menos 5 a 10% dos vencimentos e menos um dos subsídios (se se concretizar a encenação); e, mesmo assim, deverão ficar agradecidos ao Governo e ao PS.
Os nossos políticos são verdadeiros mágicos.

domingo, 6 de novembro de 2011

Jimmy Smith

Pensamentos de domingo

«Uma das grandes dores infligidas à natureza humana é a dor de uma nova ideia.»
Walter Bagehot
 
«Errar é humano. Ser apanhado em flagrante é burrice.»
Millôr Fernandes
 
«Todos os casos são únicos, e muito similares a outros.»
Thomas Eliot
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 5 de novembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

Algures na Arábia, um mestre e o seu discípulo caminhavam em passo lento por um terraço, a meio da noite.
De súbito, o discípulo diz a meia voz:
— Que silêncio.
— Não digas: "Que silêncio" — aconselhou-o o mestre. — Diz: "Não oiço nada".
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -2

Complementarmente às referências genéricas que, na semana passada, fiz sobre o conselho geral, tentarei agora detalhar e fundamentar as razões pelas quais considero que este órgão, apesar de ser o único que possui alguma, ainda que minguada, legitimidade democrática, está mal pensado e deve ser profundamente reformulado ou extinto.

O Artigo 11.º do Decreto-Lei 75/2008 diz que «O conselho geral é o órgão de direcção estratégica responsável pela definição das linhas orientadoras da actividade da escola, assegurando a participação e representação da comunidade educativa, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo.»

Nota 1 - Não é verdade que o conselho geral, com as funções e a composição que possui, seja um órgão conforme ao estipulado no referido n.º 4 do artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo. Na verdade, o que aí se estipula é uma coisa bem diferente: «A direcção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente». Ora, o órgão de direcção conselho geral tem, na sua composição — para além de professores, alunos e pessoal não docente —, encarregados de educação, representantes da autarquia e representantes da comunidade local. Trata-se, pois, de uma adulteração grosseira e perversa da lei fundamental que regula o sistema educativo.

Nota 2 - Para além desta incompatibilidade legislativa, existe um erro fundamental de concepção deste órgão. Um órgão de direcção estratégica, para poder cumprir cabalmente a função de definir as linhas orientadoras da actividade da instituição que dirige, tem de ser constituído por elementos que tenham conhecimento aprofundado da instituição — da sua natureza, do seu funcionamento e dos objectivos que ela deve cumprir. Definir as linhas orientadoras de uma escola (de um hospital, de um museu, de uma fundação, etc.) não é algo que se enquadre ou se assemelhe a uma agradável conversa de café, em que todos dão palpites, saibam muito, pouco ou nada do assunto. Mas foi para esta situação caricata que Sócrates e Rodrigues atiraram os conselhos gerais.
Felizmente, muitas das pessoas que foram «empurradas» (em particular, representantes autárquicos e da comunidade local) para  integrar os conselhos gerais, tendo consciência da sua natural impreparação para o exercício do cargo, rementem-se, sensata e sacrificadamente, ao silêncio, horas a fio, reunião atrás de reunião. Contudo, e misteriosamente, na hora de votar, surge quase sempre uma repentina iluminação que faz com que alguns desses silêncios se juntem, na forma de braço no ar ou de voto secreto, a quem antecipadamente se adivinhava que iriam juntar-se (por interesses partidários, profissionais ou pessoais). Ora, isto faz de muitas reuniões de conselhos gerais que se realizam pelas escolas do nosso país verdadeiros pântanos de conchavos que nada têm que ver com a Educação. Para além da salvaguarda daquele tipo de interesses, nada se ganha por se criar condições para que isto suceda, e a Educação perde sempre.
Sócrates e Rodrigues ao colocarem num órgão de direcção estratégica pessoas que não possuem o mínimo conhecimento da instituição que vão dirigir revelaram laborar num grave erro de concepção e prejudicaram seriamente a forma de gerir as escolas. Na base deste erro está um amontoado de ideias, em alguns casos contraditórias entre si, que, em conjunto ou separadamente, geraram esta concepção. Desse amontoado de ideias refiro as seguintes:

i) a ideia de que sobre Educação toda gente sabe, e mesmo que não saiba muito sabe alguma coisa, o que habilita qualquer um a pertencer ao órgão de direcção estratégica de uma escola;

ii) a ideia de que é possível e desejável importar, de forma acrítica e descontextualizada, um modelo de gestão, isto é, importar independentemente do local de onde a importação vem e do local para onde a importação vai. Omitem-se, com total irresponsabilidade, diferenças culturais e civilizacionais profundas entre o local de partida e o local de chegada, que significam, por vezes, radicais diferenças de valores sociais e pessoais, enormes diferenças de níveis de conhecimentos e de formação e de níveis de consciência e de intervenção cívica;

iii) a ideia de que uma opção política popular e com possibilidades de ser eleitoralmente proveitosa é mais importante do que a resolução séria e reflectida de um problema;

iv) a ideia de que a escola não deve ser gerida democraticamente, mas que deve manter, nos parâmetros mínimos, a aparência de que o é. O conselho geral foi pensado para cumprir essa função, ao mesmo tempo que se terminava com o acto democrático de eleição, pela escola, do seu conselho executivo, e se criava um órgão unipessoal: o director.

v) a ideia de que os professores não são uma classe confiável nem capacitada para orientar estrategicamente uma escola e, por isso, têm de ser minoritários na composição do órgão que tem essa competência.

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Quinta da Música - Beethoven

Trechos - Gilles Lipovetsky

«A vida intelectual deixou de ser sinónimo de emancipação do homem e de nobreza de espírito: recentemente é associada a uma "complicação", qualificar uma pessoa de "intelectual" tem qualquer coisa de pejorativo. As vendas de livros de ciências humanas não param de baixar com uma média de algumas centenas por título: isto foi dividido por dois ou três em trinta anos. Já não há mestres do pensamento, já não há grandes correntes filosóficas de valor iniciático. As grandes visões do espírito perderam o seu valor de fascinação, o seu poder de atracção libertadora. É evidente que a aura da alta cultura se degradou, a magia que a habitava desapareceu, deixa de ter cada vez menos capacidade de fazer sonhar, de provocar grandes paixões e fortes entusiasmos. A época hipermoderna é a da regressão ou da perda da posição proeminente que ocupava a alta cultura: o "valor espírito" foi substituído pela diversão, pelo desporto, pelo entretenimento dos media e das viagens, pela velocidade da informação.»
Gilles Lipovetsky
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Às quartas

BUDAPESTE

A minha caneta move-se pela página
como o focinho de um estranho animal
com a forma de um braço humano
enfiado na manga de uma camisola larga e verde.
 
Vejo-a farejando incessantemente o papel,
determinada como se pensasse apenas 
em forragear as larvas e os insectos
que lhe permitirão viver mais um dia.
 
Apenas quer estar aqui amanhã,
enfiada, talvez, na manga de uma camisa de xadrez,
com o nariz encostado à página,
obrigando-se a escrever mais uma poucas linhas,
enquanto eu espreito pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade onde nunca estive.
 
Billy Collins
(Trad.: José Alberto Oliveira)

O deserto

Os desertos da natureza fascinam, os desertos de ideias constrangem ou irritam. Constrangem, se, resultando de impossibilidade justificada, quem os protagoniza, tendo consciência dessa impossibilidade, a assume; irritam, se, por preguiça mental ou por trapaça intelectual, quem os protagoniza quer parecer que sabe aquilo que não sabe.
Lamentavelmente, Nuno Crato entra nesta última categoria. A recente entrevista que deu ao Público é mais uma confirmação do deserto de ideias que nele habita. É extraordinário comparar o discurso que Crato foi proferindo ao longo dos últimos anos (até ser empossado de ministro) e o seu actual discurso. Onde antes pintava a manta — com implosões de ministérios, com verdades absolutas sobre a avaliação dos alunos e sobre a avaliação dos professores, com inquestionáveis evidências sobre tudo e alguma coisa mais — agora «choca-se com a realidade» ou responde desta forma: perguntado sobre o objectivo com que iria repensar o modelo de financiamento do ensino superior, disse: «Está tudo em aberto»; perguntado sobre os critérios que esse modelo poderia adoptar, disse: «Vamos pensar nisso»; perguntado se já tinham começado a pagar as bolsas, disse: «Ainda não»; perguntado se tinha ideia de quantos alunos iriam perder o direito à bolsa, disse: «Ainda não».
Para além dos «está tudo em aberto», dos «vamos pensar nisso» ou dos «ainda não», Crato mostrou um enorme deserto de ideias, escondido por detrás de meia dúzia de frases que nada explicam ou que nada significam. Alguns exemplos:
 — disse que 46,7% do pessoal da administração central está no Ministério da Educação, o que, para ele, é «um valor extraordinário». Contudo não explicou a razão por que o considera «extraordinário». Quais são os referenciais que ele possui, e que não revelou, para podermos concordar ou discordar do adjectivo «extraordinário»? Qual é a fundamentação e o rigor da apreciação? Qual é a percentagem a partir da qual, no entender do ministro, deixa de ser «um valor extraordinário»?;
— disse que não estamos em época de contratar mais professores do que o estritamente necessário. Todavia, não esclareceu o que é, no seu entendimento, o «estritamente necessário». Como também não explicou quando e quem contratou professores para além do «estritamente necessário»;
— disse que a disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação vai terminar no 9.º ano, porque, e cito: «Nesta idade, a maioria dos jovens já domina os computadores perfeitamente». A justificação provoca perplexidade: porque é um hino à vulgaridade opinativa e porque é falsa — a não ser que o ministro entenda que dominar um computador signifique saber ligá-lo, navegar na net, jogar, ir ao e-mail e desligá-lo;
— disse que nas actividades extracurriculares do 1.º ciclo, que são da responsabilidade das autarquias, tem de se ver o que é essencial e o que é acessório. Para esclarecer o que, para si, era essencial e era acessório, explicou: «Se é só para manter as crianças nas escolas para ajudar os pais enquanto estão no trabalho, é uma coisa. Mas se é para lhes dar alguma componente educacional, então temos de pensar o que podemos fazer melhor». Explicação concluída, fica-se na mesma quanto à destrinça entre o que é essencial e o que é acessório;
— disse, como se a conversa fosse sobre amendoins, que ia «tentar encerrar mais umas 300 escolas» do 1.º ciclo, sem dar justificação; disse que no ensino básico quer reduzir o número de disciplinas às essenciais, sem explicar o seu conceito de «essencial», para nos permitir perceber porque escolhe umas disciplinas e não outras; e disse... e disse...
A entrevista é uma monótona repetição de indeterminações ou de afirmações que nada esclarecem, ou de vulgaridades. Lida a entrevista ficamos a saber o que sabíamos antes de a ler.
As antigas certezas e a aparente clarividência do comentador deram lugar ao pensamento árido e estéril do ministro.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Nacos

«E houve tantas noites de remoer, assim na solidão de copo refectido em qualquer perdida tasca. Ali, em plena fábrica de sonhos fáceis (o povo a rir-se e a contar-se aldrabices de esquecer à meia-volta), eu examinava com uma lupa quanto vira-ouvira-palpara-pressentira (por sentir um pouco) da Luísa, a Estrela, a da Alfama-Mouraria com dormida em plena Graça (quase o açafate inteiro do folclore de Junho). Aonde conduziam tais contactos, inquietantes? Como podia eu saber, então, que escrever viria a ser meu nome, e solidão e paz? Ignorava: as possibilidades de tudo e de todos eram-me uma estranheza, pois não ousara (ainda) desafiar as minhas. Vasculhava nos arquivos da cidade onde, desde que nado, vivia em riscos de mortalidade distraída. Percurso através de ruas e de gentes, desejo ainda sem nome de me percorrer a mim ligado a um solo e via deste à seiva do Cosmos nosso Irmão.»
Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Pub. Dom Quixote.

Para clicar


Bonecos

Quino, Bem, Obrigado, e Você?, Pub. D. Quixote
Para ampliar, clicar na imagem.