sexta-feira, 11 de junho de 2010

Fragmenti veneris diei

«Quando o chefe da secção veio ao telefone, Fate explicou-lhe o que estava a acontecer em Santa Teresa. Foi uma explicação sucinta da sua reportagem. Falou-lhe dos assassínios de mulheres, da possibilidade de todos os crimes terem sido cometidos por uma ou duas pessoas, o que os convertia nos maiores assassinos em série da História, falou-lhe do narcotráfico e da fronteira, da corrupção policial e do crescimento desmedido da cidade, garantiu-lhe que só precisava de mais uma semana para averiguar tudo o que fosse necessário e que depois partiria para Nova Iorque e em cinco dias teria a reportagem pronta.
— Oscar — disse-lhe o chefe da secção — , estás aí para cobrir a merda de um combate de boxe.
— Isto é superior — insistiu Fate — o combate é só um episódio, o que estou a propor é muito mais coisas.
— O que me estás a propor?
— Um retrato do mundo industrial no Terceiro Mundo — explicou Fate —, um aide-mémoire da situação actual do México, uma panorâmica da fronteira, um relato policial de primeira grandeza, foda-se.
— Um aide-mémoire? — disse o chefe da secção. — Isso é francês, preto? Desde quando é que tu sabes francês?
— Não sei francês — respondeu Fate —, mas sei o que é a merda de um aide-mémoire.
— Eu também sei o que é uma porcaria de um aide-mémoire — retorquiu o chefe da secção —, e também sei o que significa merci e au-revoir e faire l'amour. O mesmo que coucher avec moi, lembras-te dessa canção? Voulez-vous coucher avec moi, ce soir? E acho que tu, preto, queres coucher avec moi, mas sem dizer antes voulez-vous, que neste caso é primordial. Percebeste? Tens de dizer voulez-vous e se não dizes estás fodido.
— Aqui há matéria para uma grande reportagem — disse Fate.
— Quantos manos estão metidos no assunto? — perguntou o chefe da secção.
— De que merda é que me estás a falar?
— Quantos cabrões de pretos estão com a corda no pescoço? — perguntou o chefe da secção.
— Eu sei lá, estou a falar-te de uma grande reportagem — disse Fate —, não é de uma revolta no gueto.
— Ou seja, não há mesmo nenhum mano nessa história — disse o chefe da secção.
— Oh, meu filho da puta, não há nenhum mano, mas há mais de duzentas mexicanas assassinadas — insistiu Fate.
— Que possibilidades é que Count Pickett tem? — perguntou o chefe da secção.
— Mete o Count Pickett no teu cu preto de merda — disse Fate.
— Já viste o rival dele? — quis saber o chefe da secção.
— Mete o Count Pickett pelo teu olho do cu acima, paneleiro — continuou Fate — e pede-lhe que tome conta dele porque quando eu voltar para Nova Iorque vou rebentar-te o cu a pontapés.
— Tu cumpre o teu dever e não faças batota com as ajudas de custo, preto — disse o chefe da secção.
Fate desligou.
Ao pé dele, a sorrir, havia uma mulher vestida com jeans e casaco de couro cru. Tinha óculos escuros e do ombro pendiam-lhe uma mala de boa qualidade e uma máquina fotográfica. Parecia uma turista.
— Está interessado nos assassínios de Santa Teresa? — perguntou ela.
Fate olhou para ela e demorou a compreender que tinha escutado a chamada telefónica.
— Chamo-me Guadalupe Roncal — disse a mulher estendendo-lhe a mão.
Apertou-lha. Era uma mão delicada.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 343-344.