quarta-feira, 30 de junho de 2010

É legítimo que todos acedam ao topo da carreira?

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Optei por responder no corpo principal do blogue a um comentário feito por Fernando Vasconcelos, porque a questão por si levantada, não sendo nova, é pertinente e polémica. Deste modo, começo por transcrever o comentário e depois as minhas observações às questões que o comentário suscita.
Comentário ao meu post «Pois é, saiu o novo Estatuto da Carreira Docente» (23/6/10):
Mário : Devo então inferir que pensa que não deveriam existir quotas para o acesso às classificações mais elevadas? E que não deveria existir a dependência de vagas para o acesso ao topo da carreira? É que concordo totalmente com o primeiro ponto. Podem existir perfeitamente 100% de professores óptimos ou excelentes. Já no segundo ponto discordo em absoluto. Acho que a progressão na carreira deveria ser exclusivamente possível com a existência de vagas e não apenas no seu topo. Para qualquer escalão. Penso também que isso deveria ser resolvido por concurso baseado em currículo pelo menos acima de um determinado nível. A avaliação nada deveria ter a ver directamente com esta progressão. A avaliação deveria apenas ser uma reflexão do mérito e qualidade do professor. Poderia ser assim simples e justa. Eventualmente poderia até dar lugar a prémios de desempenho. Quando se pretende que um processo de avaliação contribua para resolver questões orçamentais de forma directa cria-se o monstro actual. Burocrático, injusto, desnecessariamente complexo. Obviamente nem todos podem chegar ao topo. É assim (ou deveria ser) em todas as profissões (pelo menos no sector privado é) não vejo sinceramente porque há de ser diferente na vossa, desculpe a frontalidade da opinião.
Fernando Vasconcelos

A questão que Fernando Vasconcelos coloca é esta: é correcto que todos os professores possam ascender ao topo da carreira? E a resposta que dá é: «Obviamente que nem todos podem chegar ao topo». Todavia, o Fernando Vasconcelos não justifica o «obviamente», o que aqui seria, como reconhecerá, fundamental. O Fernando Vasconcelos diz somente que: «É assim (ou deveria ser) em todas as profissões (pelo menos no sector privado é) e não vejo sinceramente porque há-de ser diferente a vossa.»
A este propósito, deixo-lhe algumas perguntas:
1. «Deveria ser assim em todas as profissões» porquê?
2. Todas as profissões são de natureza idêntica? Prosseguem os mesmos objectivos? Têm as mesmas exigências? A resposta é negativa para as três. Porquê, então, aceitar à partida, sem submeter a escrutínio, que todas devem ter as mesmas regras de progressão (ou, neste caso, de impedimento de progressão)?
3. O que se passa no sector privado é necessariamente exemplo para o sector público? Mas porquê, com que fundamento?
4. O sector privado e o público são comparáveis, ou são sempre comparáveis?

Agora, algumas observações sobre o assunto.
Na questão do «público» e do «privado», há um aspecto fundamental, que todos conhecemos, mas que nem sempre convocamos para a nossa reflexão: o «privado» visa a obtenção de lucro, o «público» não visa a obtenção de lucro (do mesmo modo que também não pode aceitar o desperdício). O «público» e o «privado» são de natureza objectivamente diferente e não se pode fazer de conta que não são.
E se é verdade que a natureza radicalmente diferente destes dois sectores não implica que tudo seja radicalmente diferente entre eles, implica, contudo, que seja substancialmente diferente. Por isso, tenho sempre alguma dificuldade em compreender a comparação que, a propósito de tudo e de nada, se faz entre o «público» e o «privado».
Vejamos agora o problema da restrição do acesso aos escalões.
A existência de uma hierarquização profissional com acesso por quotas aos diferentes escalões justifica-se sempre, ou apenas em determinadas circunstâncias?
Há razões substantivas para que se assuma como regra universal a limitação do acesso a escalões intermédios e/ou ao escalão topo de carreira?
Partamos do seguinte exemplo: Se o António possui os requisitos (conhecimentos e/ou competências e/ou experiência, etc. — ou seja, os requisitos que estiverem definidos pelo serviço ou empresa) para aceder a um determinado escalão profissional, que justificação pode haver para que o António não aceda a esse escalão?
Do meu ponto de vista, só pode ser por uma de duas razões, ou pelas duas razões:
a) Porque a especificidade dessa profissão exige uma rígida cadeia de comando hierarquizada (como é o caso das forças armadas, das forças de segurança, ou de empresas cuja gestão necessite de uma estrutura idêntica);
b) Porque se pretende minimizar os gastos com os salários, para aumentar os lucros da empresa — ou seja, uma razão de natureza economicista — e/ou para fomentar uma desenfreada competição entre colegas, com base no pressuposto (por vezes verdadeiro, por vezes falso, depende da natureza do trabalho e do perfil dos profissionais em questão) de que, assim, as suas perfomances melhoram.
Ora a profissão de professor não exige nem precisa de uma cadeia de comando hierarquizada. É claro que tem de haver quem assuma responsabilidades de direcção e de coordenação (e deve ter, pelo exercício dessas funções, um complemento remuneratório), mas isso nada tem que ver com um sistema restritivo de vagas à subida de escalão.
O trabalho de professor tem uma forte componente individual (formação científica e pedagógica, inicial e contínua; preparação de aulas, elaboração de material didáctico, correcção de trabalhos, testes, etc.) e uma importante componente colectiva (no grupo disciplinar, nos conselhos de turma, em projectos de natureza diversa, etc.). A primeira componente é isenta de qualquer necessidade de comando hierarquizado e a segunda componente necessita apenas de coordenação (todavia, essa coordenação pode, em alguns casos, ser exercida de modo alternado. Por exemplo, no conselho de turma do 12º A, essa função é exercida pela prof. X, e o prof.Y é coordenado por esse colega, e, no conselho de turma do 12.º B, o inverso).
Sou daqueles que defende que a verdadeira função do professor é ensinar. O resto são adjacências. E para ensinar, isto é, para o professor cumprir a sua função, os alunos têm de aprender. É por isso que se fala em processo de ensino-aprendizagem, isto é, para acontecer o acto de ensinar tem de acontecer o acto de aprender. Ora a qualidade do acto de ensinar não tem nenhuma relação com a introdução de restrições no acesso aos diferentes escalões.
Aceitar essas restrições produz uma contradição, só explicada por razões economicistas (razões que são inaceitáveis, quando se diz que a Educação é a área fundamental de qualquer país): por um lado, estipula-se que para aceder a determinado escalão é necessário preencher um conjunto de requisitos, por outro lado, impede-se que quem possui esses requisitos aceda a esse escalão.
Pela mesma razão que não deve haver quotas na atribuição do Muito Bom e do Excelente, também não deve haver quotas no acesso aos escalões. Portanto, todos os professores que tenham a classificação de Bom na sua avaliação e preencham os demais requisitos que a lei obriga, devem aceder ao escalão a que têm direito, sem restrições.

Caro Fernando Vasconcelos,
Vou completar, no próximo ano, trinta anos de serviço, e, acredite, não vi, durante estes anos, nenhum motivo que me levasse a concluir que a restrição do acesso aos escalões pudesse contribuir, no que quer que fosse, para a melhoria do ensino. Pelo contrário, a experiência destes três últimos anos, em que se introduziram restrições, mostra que muita da disponibilidade para a realização de trabalho «extra», sempre manifestada por muitos colegas, deixou de existir, porque, legitimamente, sentiram que estavam a ser vítimas de gravíssimas injustiças. Assim como viram que o «faz-de-conta» e o compadrio passaram a dominar a vida de muitas escolas, na tal busca desenfreada da vaga para aceder a uma classificação ou, no futuro, a um escalão.
Não fundo esta minha opinião em pressupostos ideológicos nem em alinhamentos politico-partidários, fundo-a apenas naquilo que a experiência me ensina e a racionalidade aconselha.

Aproveito para renovar o agradecimento do seu comentário.