sábado, 19 de junho de 2010

Não foi por falta de tempo

Confesso que não foi por falta de tempo que, nas duas últimas semanas, quase não escrevi no blogue. Falta de tempo é coisa que nenhum professor tem. Normalmente nem sabemos o que fazer ao tempo. Alguns, para o queimar, fazem blogues, outros vão a manifestações e se não há manifestações reclamam contra o governo, porque é preciso estar ocupado com alguma coisa que não seja preparar aulas, corrigir testes ou trabalhos e outras coisas dessas.
Os mais novos ainda preparam aulas, nós, os mais experientes (eufemismo de mais velhos), não preparamos aulas, damos, mecanicamente, as mesmas aulas que dávamos há vinte ou há trinta ou há quarenta anos. Os programas mudaram, mas nós, os mais experientes, continuamos a dar as mesmas aulas como se os programas não tivessem mudado, como se, todos os anos, os alunos não mudassem, como se, todos os dias, o mundo não mudasse. Nós, professores, somos assim: quanto menos fazemos menos queremos fazer, como a anterior ministra da Educação muito bem sabia. Não fosse ela professora.
Portanto, não foi por falta de tempo que quase não escrevi no blogue, nas duas últimas semanas, foi mesmo por falta de assunto. Portugal está sem assunto. Portugal não tem assunto. Nada acontece que valha a pena comentar. Tudo corre bem, tudo corre pelo melhor. Na política, na educação, no desporto, na economia, nas finanças não se encontra um motivo de interesse. Nada de estranho acontece, nada de menos recomendável acontece.
O mais recente exemplo de que nada de anormal acontece neste país, é o que se passou com a Comissão de Inquérito Parlamentar ao caso PT/TVI. O relatório aprovado por esta Comissão chegou à conclusão de que Sócrates sabia do negócio e disse, no Parlamento, que não sabia. Mas o mesmo relatório chegou a outra conclusão: concluiu que não pode concluir que Sócrates mentiu ao Parlamento. Esta conclusão tem alguma coisa de anormal? Não tem nada de anormal. Uma analogia: o menino Tonecas sabia que foi ele que comeu a última bolacha. A mãe perguntou-lhe se sabia quem tinha comido a última bolacha. O menino Tonecas respondeu que não sabia. Podemos concluir que o menino Tonecas mentiu à mãe? Não podemos. Podemos concluir que o menino Tonecas sabia e disse que não sabia, mas já não podemos concluir que o menino Tonecas mentiu à mãe. Esta não conclusão tem alguma coisa de anormal? Nada de anormal.
A Comissão de Inquérito pediu as escutas relacionadas com o caso PT/TVI ao tribunal da Comarca de Aveiro. O tribunal da Comarca de Aveiro enviou as escutas. A acompanhar o envio, ia um despacho que afirmava não existir nenhuma inconstitucionalidade ou ilegalidade na utilização das escutas para o fim a que se destinava (caso contrário, não as teria enviado, como é óbvio...), e acrescentava que sem essas escutas não seria possível compreender o que tinha acontecido em torno do negócio PT/TVI. A Comissão de Inquérito pediu as escutas; a Comissão de Inquérito recebeu as escutas; à excepção de um deputado, a Comissão de Inquérito não quis ouvir as escutas e proibiu que o seu conteúdo pudesse ser tido em conta na elaboração do relatório final. Isto tem alguma coisa de anormal? Nada de anormal.
Chamar «vuzuzelas» às vuvuzelas, como o ministro dos Assuntos Parlamentares chamou, tem alguma coisa de anormal? Não tem nada de anormal. Chamar «precaridade» à precariedade, como o primeiro-ministro e alguns ministros chamam, tem alguma coisa de anormal? Nada de anormal.
Dizer que a sala de aula deixou de ser o centro da escola, como disse ao Público uma responsável da Parque Escolar, tem alguma coisa de anormal? Nada de anormal.
Tem alguma coisa de anormal dizer, como disse o secretário de Estado Adjunto da Educação, que é uma questão de justiça que a monumental farsa avaliativa realizada no ano passado conte para o concurso de colocação de professores? Nada de anormal.
Este País não tem nada de anormal.
Não foi, pois, por falta de tempo que estive quase duas semanas sem escrever. Foi porque este país não tem assunto.
Ia escrever sobre o quê?