sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Fragmenti veneris diei

«Milagrosamente, o professor pôs-me ao lado dela, num banco da última fila que parecia um híbrido entre mesa e escrivaninha. Eu usava calções e a Luz saias. Enquanto escrevíamos, a minha perna esquerda e a sua direita aproximavam-se e permaneciam juntas, numa espécie de carícia prolongada, sem que nada, por cima do móvel híbrido, denunciasse esta actividade subterrânea. Agíamos como se a parte inferior do corpo fosse autónoma em relação à superior. Por cima sucediam umas coisas e por baixo outras, era tão simples como isto.
E também tão complicado como isto, pois quando nos intervalos me aproximava da Luz, esperando reconhecer nos seus olhos ou nos seus lábios a paixão que evidenciavam as suas pernas, só encontrava indiferença, ou mesmo alguma indubitável hostilidade. Tratava-me com algum desprezo, como se fosse uma criança pequena. Cheguei a pensar que a sua cabeça não era consciente do que faziam as suas extremidades, o que também não seria uma coisa excepcional num mundo tão compartimentado como era o nosso, um mundo em que havia sempre uma vida oculta no interior da que se manifestava. Compreendi obscuramente que a realidade estava dividida em duas metades (uma delas invisível) que, apesar de complementares, estavam condenadas a não se encontrar.»
Juan José Millás, O Mundo, Planeta Manuscrito, p. 143.