quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Gostei de ler

Viagem a um universo paralelo
«Domingo passado, bem cedinho, tive acesso a um universo paralelo. Lia jornais e blogues, e estava tudo bem. Enfim, pelo menos o costume. Um bocadinho surpreendido pela ferocidade de algumas certezas, mas nada de grave. Pela terceira chávena de café, no entanto, tudo mudou.

Era uma entrevista de um primeiro-ministro, no "Diário de Notícias". Um bravo primeiro-ministro que nunca na sua vida fez qualquer pressão sobre um só jornalista deste planeta ou de outro. Nunca. Um primeiro-ministro que sempre buscou ter uma relação "distante" com a comunicação social. (Ao contrário de quem? De Cavaco Silva, adivinhou.) O primeiro-ministro em questão prepara-se afincadamente para os debates políticos. Não só porque odeia como ninguém o pecado da soberba, como igualmente, mesmo principalmente, porque a "comunicação social moderna" (no tempo dos faraós era diferente) não lhe concede a devida oportunidade para dar conta ao país das suas obras, coisa que os debates finalmente lhe permitem fazer.

Fora das obras resta-lhe pouco tempo para outras atenções. Não faz ideia de quantas pessoas viram os debates em que participou. Não perde um só segundo do seu precioso tempo a pensar em eventuais desventuras da oposição. Desconhece até o nome dos presidentes das maiores empresas. Não lê as entrevistas dos grandes empresários. Só acredita na ciência, em particular a dos "cientistas políticos", que adora. É mesmo, pela distracção, quase uma espécie de Professor Tournesol. Só lhe falta andar de pêndulo na mão, apaixonado pela radiestesia. Desde que a oposição não lhe chame "zuavo", está tudo bem. E detesta, com intenso desprezo, aqueles que vêem "conspirações em todo o lado". (É verdade, juro.) Coerentemente, deixa a "maledicência" aos outros, aos especialistas da infâmia.

Ah, e é amicíssimo da cultura! Só vê, de resto, a RTP 2, porque não tem telenovelas nem concursos. Porque o que lhe interessa é, no fundo, a espiritualidade. Não sendo católico, nem acreditando em milagres - era o que faltava, meu Deus! -, gosta da partilha da espiritualidade. "Partilha", note-se, não o vão tomar por um monge solitário perdido no árido deserto. Isso é que não. Solidário, mas não solitário.

Por pura coincidência, este primeiro-ministro - este santo e impoluto homem, esta fatal maravilha da nossa idade - chama-se, a fazer fé no "Diário de Notícias", exactamente como o deste nosso mundo, José Sócrates. Sim, esse mesmo. Há, de facto, coisas extraordinárias.»
Paulo Tunhas, i (23/9/09)