terça-feira, 6 de maio de 2008

A paz necessária a uma guerra inútil - 2

Tudo isso existe e deu sinais há muito, muito tempo. E o que tivemos? Um conflito que se arrasta desde 2005 por causa do Estatuto da Carreira Docente, com momentos de histeria, com o envolvimento de muitos opinadores e da opinião pública em geral, para aparentemente acabar em acordo entre o Ministério da Educação e os sindicatos, acordo que deixa tudo mais ou menos como estava antes de 2005. Esgotámos, uma vez mais, as energias reformistas sem tocar nos problemas de fundo. Pior do que isso é o facto de os erros políticos terem sido tantos, a falta de respeito pela dignidade dos profissionais da educação foi levada a limites quase inimagináveis, que o que pode sobrar é uma maior legitimidade dos professores para resistirem à mudança quando ela era e é indispensável. E quem é responsável por isso? Só falta dizer-se que são os professores de sala de aula que há décadas aturam tudo isto.

O que é evidente desde 2005 é que uma agenda reformista errada imposta unilateralmente pelo governo levou a reboque uma opinião pública e uma opinião publicada durante muito tempo quase acríticas e, até agora, incapazes de mudar o enfoque dessa agenda. O que tem sido ligeiramente diferente em relação à longa história passada é que, por uma vez, não creio que fosse exigível uma outra postura aos sindicatos dos professores. Há muito que sou crítico do movimento sindical, entre outras razões, por sistematicamente extravasar os domínios da sua competência e pela fraca capacidade em mover-se, enquanto força social, com maior autonomia política e financeira. Todavia, isso não resulta apenas da postura do movimento sindical, mas antes da estrutural incapacidade do sistema em separar as questões laborais do corpo docente das outras questões de fundo, aquelas que são verdadeiramente decisivas e que mais afectam a qualidade do trabalho em sala de aula. Há nisso graves responsabilidades por parte dos partidos políticos, no geral incapazes de produzir pensamentos e estratégias consistentes que traduzam a sua visão do sector.

A verdade é que entre 2005 e 2008 os sindicatos dos professores têm actuado naquele que é o seu espaço de maior legitimidade precisamente pela elevada e errada relevância que o governo conferiu às questões laborais. E tanto maior a legitimidade sindical quanto mais o governo socialista recorre a um tipo de actuação com muitos traços impróprios de sistemas de negociação social de uma democracia adulta na qual os seus responsáveis, gostem ou não, devem respeitar as instituições existentes como os sindicatos.

O problemático é ainda não se estar a aproveitar a actual conjuntura para clarificar, por um lado, o que é matéria sindical e, por outro lado, o que é matéria de ensino propriamente dita. A última está relacionada com assuntos que preocupam, em simultâneo, professores, alunos, encarregados de educação, governantes e cidadãos em geral. Para os próprios professores o que pode sobrar para o futuro é continuarem a correr o risco de voltar a ter a pluralidade em que assenta a sua identidade profissional – pela diversidade de origens sociais dos professores; pela diversidade geográfica de onde são naturais; por uns se identificarem tanto com o «país moderno e urbano» e outros com o «país rural e profundo»; pela diversidade de áreas académicas e de níveis de formação; pela diversidade de filiações religiosas, partidárias ou sindicais; pela sua dimensão em número de indivíduos; pela diversidade de interesses e de perspectivas sobre a profissão; entre outras características – o risco é essa diversidade continuar afunilada de modo muito redutor na representatividade sindical. O sindicalismo tem de ser visto apenas como uma entre diversas possibilidades do corpo docente se expressar e ser representado quer junto da tutela, quer tendo em conta a restante imagem pública que os professores transmitem. Seria importante que as mais diversas sensibilidades da classe docente ganhassem formas estruturadas de representatividade, inclusivamente parte delas com aproximações políticas explícitas.

Um dos dramas da educação é não se perceber que a dimensão dos problemas, hoje e no passado, é acima de tudo política e ideológica. Ao omitir-se essa dimensão por uma espécie de obsessão social que vê a cada passo o pecado na política, o resultado é a política acabar por se manifestar no ensino por vias perversas porque encapotadas. Como se a política não pudesse ser uma actividade nobre e como se não percebêssemos que a fragilidade dos partidos políticos não se traduzisse em consequências prejudiciais para a vida de todos nós, dado que essa fragilidade implica o reforço do poder autoritário do Estado e a consequente diminuição do espaço para a nossa liberdade individual. No ensino, a manifestação perversa da política tem surgido, entre outras formas, umas vezes relacionada com conotações ideológicas evidentes naquilo que se designa por «pedagogia» ou por «ciências da educação», outras vezes surge associada ao facto de a tendencial neutralidade da ciência aparecer mesclada com propósitos ideológicos demasiado rasteiros que nada têm do pluralismo próprio de uma democracia. O último aspecto é visível quer nas estruturas curriculares, quer nos programas escolares, quer na forma como eles são transmitidos ou como se processa a avaliação do trabalho dos alunos, quer ainda no tipo de relação professor/aluno que, em maior ou menor grau, condiciona os modelos de conhecimento académico e atitudes cívicas que compete às escolas fomentar.

Se é impossível ser-se politicamente asséptico no ensino (e ainda bem!), pior mesmo é quando não temos (ou fingimos não ter) consciência da intrínseca dimensão política e ideológica das questões da educação. A esse nível, os que merecem maior desconfiança são precisamente aqueles que defendem, por ignorância ou por pressão para a manutenção do statu quo, que na educação não há política ou, pior ainda, defendem que na educação não deve haver política. Essa é uma tentação dos regimes e das
mentalidades pré ou anti-democráticas que em Portugal, no domínio do ensino, se estão a prolongar muito para além do Estado Novo.

Abrir o sistema de ensino ao pluralismo (pedagógico, político, ideológico, ao nível dos modelos de organização institucional), isto é, proporcionar espaço às diversas sensibilidades sociais, significaria ultrapassar décadas em que as políticas educativas têm sido decididas por um trio minúsculo de iluminados assente nos governantes da educação, na elite sindical e nos «cientistas da educação»/«especialistas», com uma ou outra variante como os pretensos representantes dos pais. Gostava que este fosse o momento de romper com esse vício do sistema, dado que o que está em causa acaba por condicionar de forma directa ou indirecta o projecto de sociedade que tem implicações na vida de todos nós.

Termino com uma ideia: os professores de sala de aula (e não os outros, que também os há nas escolas) constituem das classes socioprofissionais mais oprimidas. E quem os oprime não são uns abstractos patrões, mas aqueles que, não trabalhando nas salas de aula, mais enchem a boca com expressões como «defesa da liberdade na escola inclusiva» cujo produto final não tem sido mais do que a menorização da dignidade dos professores.
Gabriel Mithá Ribeiro
Texto enviado por Paula Rodrigues