sábado, 13 de abril de 2013

Nacos

«Ali, o ar estava saturado da fina-flor de um silêncio tão alimentício, tão suculento, que eu só lá entrava com uma espécie de gulodice, sobretudo nessas primeiras manhãs ainda frias da semana da Páscoa, onde o saboreava melhor porque mal acabava de chegar a Combray: antes de entrar para dar os bons-dias à minha tia faziam-me esperar um momento, na primeira sala, onde o sol, ainda de Inverno, viera aquecer-se ao pé do fogo, já aceso entre os dois tijolos e que polvilhava todo o quarto de um cheiro a fuligem, que fazia dele como que uma daquelas grandes "frontarias de fogão" do campo, ou daqueles panos de chaminé dos palácios, debaixo dos quais desejamos que se declarem lá fora a chuva, a neve, ou até alguma catástrofe diluviana, para acrescentar ao conforto da reclusão a poesia da invernagem; eu dava alguns passos entre o genuflexório e os cadeirões de veludo forte, sempre revestidos de um resguardo para a cabeça de renda, e o fogo, cozendo como uma massa os apetitosos odores que enchiam de grumos o ar do quarto, e que a frescura húmida e ensolarada da manhã já fizera trabalhar e "levedar", folhava-os, dourava-os, enfolava-os, enturgecía-os, fazendo um invisível e palpável bolo de província, uma imensa torta de maçãs, à qual, logo depois de saborear os aromas mais estaladiços, mais finos, mais reputados, mas também mais secos, do armário, da cómoda, do papel de ramagens, eu regressava sempre com uma inconfessada cobiça, deixando-me prender no odor medíocre, viscoso, insosso, indigesto e frutado da colcha de flores.»
                                  Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do lado de Swann, Relógio D'Água.