Há um ano, escrevi o seguinte:
«É uma amarga ironia observar que, em cada 25 de Abril que se sucede, aqueles que têm a responsabilidade de proceder à sua celebração oficial são personagens cuja identificação com o acontecimento que celebram vai sendo cada vez menor. Ano após ano, os protagonistas institucionais das celebrações vão acentuando o divórcio entre o que eles próprios são e simbolizam e entre o que o 25 de Abril foi e simboliza.
Ao contrário do que, com insistência, os discursantes oficiais afirmam, o 25 de Abril não foi apenas o momento do triunfo da Liberdade. O 25 de Abril foi essencialmente o momento de uma notável inversão de valores políticos e éticos, na sociedade portuguesa. Valores como a Igualdade, a Solidariedade, a Justiça Social e outros foram parte integrante da Liberdade abrilista. Procurar reduzir o 25 de Abril à aquisição da Liberdade formal é a preocupação daqueles que, tolerando a existência e a inevitabilidade da Liberdade, a pretendem vazia de conteúdo.»
Desgraçadamente, o que há um ano era verdade continua hoje a sê-lo. Mas aquilo que chamei de «amarga ironia» talvez deva agora ser chamado de insultuoso cinismo. A verdade é que, apesar das personagens serem as mesmas, a distância entre o que elas simbolizam e o que o 25 de Abril simboliza cresceu ainda mais. Os actuais detentores do poder político tudo fazem para destruir qualquer réstia ou sobrevivência de Igualdade, de Solidariedade ou de Justiça Social. Usufrutuários da Liberdade que Abril lhes trouxe, diariamente atraiçoam os Valores que a Abril estão associados. Com um impressionante cinismo, servem-se da Liberdade para recuperar o domínio e os privilégios perdidos. Sem tibiezas, todos os dias enganam quem os elegeu e todos os dias querem transformar a democracia num jogo sem regras éticas.
Cinicamente, vale tudo.