1. É em momentos como este que as águas voltam a separar-se. As reacções à recente decisão do Tribunal Constitucional sobre o Orçamento de Estado de 2013 mostram, de forma exemplar, essa (salutar) divisão de águas.
Há uma mar de hipocrisia a inquinar grande parte dos posicionamentos dos políticos que apoiam o governo e dos comentantes profissionais. Muitos daqueles que surgem nos órgãos de comunicação social a explicar que a sua primeira preocupação é a defesa do interesse nacional e da justiça social estão a ser protagonistas de uma enorme hipocrisia. Ou melhor, mentem. Na realidade, a sua primeira preocupação está centrada na defesa dos seus interesses pessoais. É isso que verdadeiramente os move. E é consoante os interesses pessoais poderem estar mais ou menos em risco que o seus discursos se tornam mais ou menos agressivos. Todavia, essa defesa dos interesses pessoais não é assumida, não é explicitada, ela surge sempre dissimulada no meio de uma especulação aparentemente teórico-técnica sobre economia.
2. Quando, em 2012, os funcionários públicos e os pensionistas viram reduzidos os seus vencimentos e pensões e ficaram sem os subsídios de férias e de Natal, quase nenhum dos comentantes profissionais se mostrou preocupado com o assunto. Disseram que era uma inevitabilidade, atendendo à situação do país. «Tecnicamente» era um corte na «despesa», logo, estávamos no bom caminho.
Nessa altura, não houve preocupação de saber se esses funcionários e pensionistas — que são pessoas tão reais como todos as outras, que têm o mesmo valor moral e a mesma dignidade pessoal como todas as outras, que têm famílias como todas os outras, que se alimentam e vestem e vivem como todas as outras — tinham capacidade de suportar um colossal corte nos rendimentos. Por parte desses comentantes profissionais e dos apoiantes do Governo não houve réstia de indignação nem sequer de protesto.
3. Contudo, quando em meados de 2012 o Tribunal Constitucional (TC) anunciou que o corte dos subsídios de Natal e de férias não poderia manter-se nos anos seguintes, rapidamente quase todos os comentantes profissionais e os apoiantes governamentais saíram das conchas de silêncio e não esconderam a sua veemente contestação à decisão do TC. E porque contestaram eles de modo tão veemente? Por uma razão simples: deixando de ser possível mexer tão descaradamente nos bolsos dos funcionários públicos e dos pensionistas passaria a ser necessário mexer também nos bolsos dos outros cidadãos, precisamente aqueles outros onde eles se incluem. Ora esta circunstância fazia toda a diferença: uma coisa era penalizar apenas os funcionários públicos e os pensionistas, outra coisa era também eles passarem a ser penalizados.
Porém, as verdadeira razões da contestação não são apresentadas, são dissimuladas, são ocultadas por detrás de um discurso aparentemente «técnico»: «a mexida nos bolsos de todos não é "tecnicamente" um corte na "despesa", "tecnicamente" é um aumento de "receitas". Logo, deixamos de estar no bom caminho. Alegadamente seria esta a causa da preocupação. Isto é, procura-se que a defesa dos interesses pessoais seja escondida no meio de uma suposta discussão teórico-técnica em torno da «dialéctica» despesa-receita.
4. Em finais de 2012, foi anunciado o orçamento para 2013. Ou seja, foi anunciado o previsto: «um enorme aumento de impostos», nas palavras do próprio ministro das Finanças. Foi então que os comentantes profissionais viram, em concreto, quanto custaria a mexida nos seus bolsos. A histeria estalou: «que já se estava a ultrapassar a capacidade de suportar tantos impostos»; «que não era possível sobrecarregar mais as famílias», etc. E, novamente, o pormenor «técnico» dissimulador: «Trata-se de aumentar as receitas, em lugar de se cortar nas despesas.» Ou, em linguagem mais clara: «Deveriam deixar de cortar nos nossos rendimentos e deveriam cortar nos vencimentos dos funcionários públicos e nas pensões dos reformados.» (A este propósito é bom recordar o seguinte: no Orçamento para 2013, os funcionários públicos e os pensionistas tiveram, e têm, de suportar o mesmo «enorme aumento de impostos» que todos suportaram e, acrescidamente, continuavam sem o direito a receber o subsídio de férias e mantinham, como mantêm, o corte mensal nos vencimentos entre 5 e 10%; os pensionistas, para além de tudo isto, tiveram, e ainda têm, de suportar a designada contribuição extraordinária de solidariedade).
5. Agora que o TC disse o óbvio, isto é, que os funcionários e os pensionistas não podem continuar a ser penalizados de forma excessiva, o mundo dos comentantes profissionais entrou novamente em frenesim e novamente começou a fazer contas e concluiu: «vamos ter de pagar mais.» E, mais uma vez, vem o veemente protesto contra o TC, agora já a raiar o insulto, e sempre acompanhado do cândido detalhe «técnico»: «isto significa menos corte na despesa e mais aumento de impostos/receitas, o que é inaceitável».
Todavia, o que é verdadeiramente inaceitável é a imensa hipocrisia daqueles que protestam apenas quando são os seus interesses que estão em causa. Daqueles que nunca foram solidários. Daqueles que diariamente conspurcam o significado de expressões como «interesse nacional» e «justiça social».
A hipocrisia, o egoísmo e a soberba sociais repugnam. Mas também separam águas.