Não fosse o enorme sofrimento que consigo arrasta, o tempo que estamos a viver seria de particular utilidade. Na verdade, as sui generis circunstâncias do período que estamos a passar obrigam a vir à tona muitas das mais toscas contradições que, em tempos «normais», a hipocrisia política e social consegue esconder com relativa facilidade.
E não fosse a causa dessas grosseiras contradições ser também uma das causas da dor e da injustiça que atingem quase todos nós, poderíamos até sorrir com o cair do véu da dissimulação.
Um exemplo do que acabo de referir.
A propósito do pagamento ou não pagamento da dívida soberana aos credores, são recorrentemente proferidas, com enfâse, expressões desta natureza: «O Estado tem de honrar os compromissos que assumiu»; «Os compromissos são para ser cumpridos»; «É impensável fugirmos às nossas responsabilidades»; «Temos de ser credíveis».
A propósito da captação de investimento estrangeiro ou da criação de condições para o desenvolvimento económico das empresas são repetidamente feitas afirmações como estas: «O Estado tem de garantir estabilidade contratual.» «A estabilidade de longo prazo é fundamental»; «As regras definidas têm de ser cumpridas e as expectativas devem ser respeitadas»; «É assim que as pessoas de bem se comportam».
Estas frases são ditas com aparente convicção e são inseridas no domínio dos princípios fundamentais da ética. Fundamentais e invioláveis, segundo os dizentes. Os dizentes são: membros do actual governo, membros do governo anterior, deputados da actual maioria, deputados da maioria anterior, patrões, financeiros, economistas da elite dominante, comentantes profissionais.
O problema surge quando estas evidências éticas, quando estes princípios afirmados como inabaláveis são repentinamente esquecidos ou misteriosamente dissolvidos no éter. O problema surge e agrava-se quando aqueles que os proferem são os mesmos que, quando o contexto muda, proferem e praticam o oposto. E aquilo que antes era princípio absoluto passa com facilidade a minudência relativa e desprezível.
Na realidade, não é possível defender que «o Estado tem de honrar os compromissos que assumiu» relativamente aos credores e ao mesmo tempo defender que o Estado já não tem de honrar os compromissos que assumiu relativamente aos seus funcionários e pensionistas e para com aqueles a quem presta apoio social. Não é possível apregoar que «o Estado tem de assumir as suas responsabilidades» para com os credores e simultaneamente considerar que o Estado não tem de assumir as suas responsabilidades para com os funcionários públicos e pensionistas e para com aqueles a quem presta apoio social.
A falta de honestidade intelectual é evidente. A falta de critério moral é confrangedora.
Relativamente ao valor «estabilidade» o problema replica-se.
Afinal onde se situa, na hierarquia axiológica da nossa elite, aquilo que é afirmado como um valor essencial — «o Estado garantir estabilidade contratual» — se a estabilidade dos contratos é somente um valor quando se reporta às empresas e é um desvalor quando se reporta às pessoas? As expectativas são invioláveis para as empresas e violáveis para os trabalhadores e reformados e para quem necessita de apoio social? Afinal como se comporta uma pessoa de bem: umas vezes respeitando as regras definidas outras vezes desrespeitando-as?
Esta ideologia que nos domina resulta de um amontoado de interesses não assumidos e apenas sobrevive no pântano da hipocrisia política e da retórica de falácias.