sexta-feira, 19 de março de 2010

Fragmenti veneris diei

«Não sei o que vim fazer a Santa Teresa, disse para si Amalfitano ao fim de uma semana a viver na cidade. Não sabes? Não sabes mesmo?, interrogou-se. Realmente não sei, disse para si mesmo, e não pôde ser mais eloquente.
Tinha uma casinha de um só piso, três quartos, uma casa de banho completa mais um sanitário, cozinha americana, uma sala de jantar com janela viradas a poente, um pequeno alpendre de tijoleira onde havia um banco de madeira desgastado pelo vento que descia das montanhas e do mar, desgastado pelo vento que vinha do Norte, pelo vento dos orifícios e pelo vento com cheiro a fumo que vinha do Sul. Tinha livros que conservava há mais de vinte e cinco anos. Não eram muitos. Todos velhos. Tinha livros que comprara há mais de dez anos e não se importava de emprestá-los, ou de os perder, ou que lhos roubassem. Tinha livros que às vezes recebia perfeitamente lacrados e com remetentes desconhecidos e que ele já nem sequer abria. Tinha um pátio ideal para semear relva e plantar flores, embora ele não soubesse que flores seriam as mais indicadas para ali plantar, não cactos ou cactáceas, mas flores. Tinha tempo (julgava isso) para dedicar ao cultivo de um jardim. Tinha uma cancela de madeira que precisava de uma demão de tinta. Tinha um ordenado mensal.
Tinha uma filha que se chamava Rosa e que sempre vivera com ele. Parecia difícil que fosse assim, mas era assim.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 195.