Entre várias coisas, há duas que me deixam perplexo: a capacidade que os principais protagonistas da nossa elite política têm para brincar com a vida dos outros e o ar sério e grave com que o fazem.
Portas e Passos, por esta ordem, ocupam os lugares cimeiros deste ranking. Por motivos diferentes, ambos brincam com a vida dos portugueses e ambos fazem questão de se apresentarem ao público como possuidores da mais elevada seriedade e gravidade.
Passos brinca com a nossa vida porque sabendo que nunca esteve, e sabendo que continua a não estar, preparado para governar um país, muito menos um país nas condições do nosso, candidatou-se ao cargo e pretende perpetuar-se nele. Passos brinca com a nossa vida porque sabendo que nos mentiu depravadamente, sabendo que está a governar precisamente ao contrário do compromisso que assumiu com os eleitores, mantém-se provocatoriamente em funções. Todavia, brincando como brinca com a vida dos portugueses, Passos consegue apresentar-se publicamente com uma facies carrancuda e grave, como se fossemos nós que estivéssemos em dívida para com ele.
Mas Portas, neste domínio, ultrapassa Passos. Na desgraçadamente longa vida política que leva, Portas já disse tudo e o seu contrário, já fez tudo e o seu contrário, já mentiu desalmadamente a tudo e a todos, em particular, aos contribuintes, pensionistas e reformados... Já deu estonteantes cambalhotas ideológicas, estratégicas e tácticas, já jurou inúmeras fidelidades (dentro e fora do partido) — todas elas atraiçoadas — foi, é e provavelmente continuará a ser o campeão da verbe demagógica e falaciosa. Todavia, por maior que seja a pirueta, por mais descarada que seja a traição, a gravidade do seu semblante é insuperável, em todas as situações. É visível para (quase) todos que se trata de uma gravidade encenada, treinada, artificial, contudo, eficaz, para os indefectíveis seguidores. Portas, quando era «jornalista», brincava com os leitores; quando era adjunto de Monteiro, brincava com os militantes do PP; quando era somente líder partidário, brincava com os seus eleitores; desde que é governante de Portugal, brinca com a vida de todos os portugueses.
Agora, os dois juntos decidiram brincar às demissões, aos comunicados, às tomadas de posse, ao faz e desfaz governos. Para estes dois, governar o país tornou-se uma imensa brincadeira, ainda que envolta sempre num ar de seriedade e gravidade.
A esta brincadeira generalizada, juntou-se um terceiro protagonista, Cavaco Silva, que com ela colabora. Os três brincam e deleitam-se, mas esta brincadeira tem de terminar. Estas três figuras têm de ir brincar para outro sítio.