sexta-feira, 13 de abril de 2012

Novas Oportunidades (11)

Apesar do meritório esforço de alguns, ainda são muito poucos aqueles que têm em conta a informação e os ensinamentos que a nossa história da educação disponibiliza. Na verdade, a tentação de abraçar, sem escrutínio rigoroso, teorizações pedagógicas importadas de contextos culturais e educacionais muito diferentes do nosso tem sido, para muitos responsáveis, uma tentação irresistível. Sem uma ponderação sobre a qualidade, a exequibilidade e a adequação dessas teorizações à realidade específica portuguesa, elaboram-se, a partir delas, projectos desassisados, mobilizam-se meios humanos, materiais e financeiros muito para além do necessário e do razoável e espera-se que o milagre aconteça.
Havia e há, no nosso país, uma realidade educacional confrangedora. Em 2004, cerca de três milhões e meio de trabalhadores portugueses tinham um nível de escolaridade inferior ao ensino secundário e, desses, quase dois milhões e seiscentos mil não tinham concluído o 9.º ano. Esta é a realidade estatística que nos envergonha e que nos retrata. Perante esta realidade estatística, o que se fez? Ignorou-se o que a história da educação ensina, ignorou-se o que a experiência quotidiana revela e optou-se pelo caminho fácil: mudar rapidamente a estatística, ainda que mudando quase nada a realidade. Irresponsavelmente foi esta a opção tomada. Através, como acima referi, de uma mobilização sem precedentes de meios humanos, materiais e financeiros e com um projecto fantasioso anunciou-se que, em menos de meia-dúzia de anos, um milhão e duzentos mil portugueses iria concluir o 12.º ano. O que verdadeiramente interessava era alterar de forma drástica a estatística, à realidade logo se veria o que fazer com ela.
A qualidade da formação, que deveria ter constituído a primeira de todas as preocupação, foi descurada e preterida em favor da quantidade da formação. Um modelo assente numa construção teórica que não tem em conta a realidade não pode gerar nunca formação de qualidade. Quer nos pressupostos, quer nos conteúdos, quer na estruturação o modelo é, como tenho procurado mostrar ao longo das últimas semanas, uma mescla de ideologia, de arcaísmos conceptuais e de emaranhados processuais que em pouco ou nada respondem às necessidades de formação de que os portugueses carecem.
Um exemplo mais, a juntar aos outros que tenho apresentado.
No documento intitulado Referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos, escreve-se o seguinte, sobre a Área (vulgo: disciplina) Cidadania e Profissionalidade:
«De forma a garantir o carácter contextualizado das competências, a Área Cidadania e Profissionalidade do Referencial estrutura-se em torno de oito Unidades de Competência (UC) geradas a partir de oito núcleos (Núcleos Geradores) e que dão corpo a três grandes Dimensões de Competências: cognitivas, éticas e sociais (Audigier, 2000). 
Esses núcleos, geradores de cada uma das Unidades de Competência, são os seguintes: 
Direitos e Deveres; Complexidade e Mudança; Reflexividade e Pensamento Crítico; Identidade e Alteridade; Convicção e Firmeza Ética; Abertura Moral; Argumentação e Assertividade; Programação.
Referenciados a quatro Domínios de Referência para a Acção (DR) — isto é, a contextos concretos em que se experimenta a vida quotidiana — desde a vida privada, à vida profissional, à interacção com as instituições e ainda ao enquadramento por processos e dinâmicas espácio-temporais mais amplos — estas Unidades de Competência materializam-se em competências chave precisas, cuja intensidade se pretende identificar através de Critérios de Evidência. A noção dessa intensidade diferenciada confere sentido à presença implícita de Elementos de Complexidade (identificação, compreensão e intervenção) no elenco dos critérios de evidência. Claro que a singularidade de cada história de vida e o correspondente trabalho de aprendizagem revelará combinações diferentes entre expressões de cada um destes sub-núcleos, numa teia de composições tendencialmente infinita. A trajectória de cada adulto é uma experiência complexa. Não se pretende, por isso, de modo algum, sugerir um padrão de gradação linear — de "menor" para "maior" complexidade — mas tão só a presença de registos diferenciados — que cada experiência pessoal molda — nas oito Unidades de Competência aqui identificadas.
[...]
Esta Área estrutura-se, portanto em dois planos. Num primeiro, com base nos oito Núcleos Geradores (cada um deles na génese de uma das Unidades de Competência); num segundo, a Área CP cruza esses oito Núcleos Geradores com os quatro Domínios de Referência para a Acção. Deste cruzamento entre os Núcleos Geradores e os Domínios de Referência para a Acção resultam 32 Temas, e consequentemente as competências-chave que fornecem a matriz em que assenta o processo de reconhecimento, validação e certificação.» (pp. 36-37)
Não é possível deixar de enfatizar, ainda que o faça em forma de uma simples anotação, a designação atribuída a um dos «núcleos geradores» (neste modelo, a criatividade terminológica é uma constante...): Convicção e Firmeza Ética. É uma pérola uma designação destas.
Também não é possível deixar de anotar a introdução do conceito de «intensidade», em referência às competência-chave, e que essa «intensidade» se «identifica através de Critérios de Evidência», e que é a «intensidade diferenciada que confere sentido à presença implícita de Elementos de Complexidade no elenco dos critérios de evidência». Há passagens imperdíveis nestes documentos da INO. Também vale a pena reler a passagem que termina em «teia de composições tendencialmente infinita».
Mas o que realmente interessa verificar, e que é ilustrado pelo excerto transcrito, é que um modelo assim construído, num imenso labirinto de formalismos e de conteúdos, não pode produzir qualidade formativa. E a consequência é o seu descrédito, e a consequência é que, no terreno, o modelo é ignorado e malquisto. Nestas circunstâncias, o que sobra é a descoordenação, a falta de referenciais, o permanente improviso, a formação sem qualidade.

De que serve aos próprios e ao país apresentar-se uma estatística que diz termos mais umas centenas de milhar de portugueses com o 12.º ano, se o problema da falta de formação de qualidade se mantém? O país não evoluirá se continuar a enganar-se a si próprio. O país não evoluirá enquanto não houver Educação de qualidade, enquanto não houver Formação de qualidade. A quantidade sem qualidade nunca resolveu problemas. Pode dar votos e distribuir ilusões, mas não resolve problemas.
Desgraçadamente a Iniciativa Novas Oportunidades foi, na realidade, a Iniciativa Nova Oportunidade Perdida.