sexta-feira, 9 de março de 2012

Novas Oportunidades (7)

No texto da semana passada, referi o que entendo ser um dos males nucleares do modelo de formação da Iniciativa Novas Oportunidades (INO): assentar numa construção teórica autodeslumbrada, sem capacidade de auto-escrutíneo e, simultaneamente, muito afastada da realidade. O autodeslumbramento e a ausência de auto-escrutíneo tem consequências diversas, uma delas é a de gerar contradições insuperáveis.
Segundo o Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos, os cargos de mediador e de formador dos cursos EFA não podem ser exercidos por qualquer um. Depreende-se, do que se lê, que a sua escolha deve ser criteriosa e rigorosa: «A função do mediador deve ser desempenhada por formadores e outros profissionais, designadamente ligados às tarefas de orientação vocacional, detentores de habilitação de nível superior e possuidores de experiência relevante em matéria de educação e formação de adultos» (pp. 44-45).
Relativamente à selecção dos formadores, exige-se que: «Deve ser considerada a importância da qualidade pedagógica comprovada e da experiência profissional prévia destes elementos em ofertas formativas especificamente vocacionadas para a educação e formação de adultos, como critérios que garantem a prossecução dos objectivos e princípios orientadores dos cursos EFA» (em ambas as citações os sublinhados são meus).
O acto da escrita é um acto livre, todavia, quem escreve e ao mesmo tempo prescreve tem a obrigação de saber o que está a escrever e a prescrever. Ora, quem escreveu e prescreveu o que acabei de citar dificilmente saberia, quando o fez, o que estava realmente a prescrever. Se o objectivo da INO era (e foi, e continua a ser) o de certificar, formar e educar mais de um milhão de portugueses num relativamente curto período de tempo, ou seja, se o objectivo era (e é) uma massificação da certificação, formação e educação de adultos, como foi possível alguém determinar que o recrutamento dos mediadores e dos formadores deveria obedecer aos critérios de, respectivamente: posse de «experiência relevante em matéria de educação e formação de adultos» e de «experiência profissional prévia destes elementos em ofertas formativas especificamente vocacionadas para a educação e formação de adultos»? Uma massificação de formandos implica uma proporcional massificação de mediadores e de formadores. Em Portugal, era de todos conhecido que não existiam recursos humanos massificados no  domínio da educação e formação de adultos. Contudo, isso não impediu minimamente que se construísse um modelo cujos pressupostos exigiam precisamente o que não havia: recursos humanos massificados no domínio da educação e formação de adultos. E das duas uma: ou essa exigência tinha um carácter meramente folclórico para proporcionar uma aparência e uma exigência que o modelo na realidade não tinha, não tem nem pressupõe; ou essa exigência era, na verdade, um pré-requisito essencial para o sucesso do modelo e, neste caso, não sendo o pré-requisito satisfeito o modelo vê o seu sucesso hipotecado. 
O que nos revela a realidade? Revela que foram e são atribuídas as funções de mediador e de formador a professores que nunca na sua vida profissional estiveram ligados à educação e formação de adultos; revela que há mediadores sem qualquer «experiência relevante», pois nem a experiência mínima possuem nesta área; revela que há formadores cuja «experiência profissional prévia» é zero, na educação e formação de adultos.
À permanente falta de sobriedade dos textos fundamentadores da INO, acrescenta-se uma notável desadequação da realidade, o que não só os descredibiliza como os torna, em muitos casos, inúteis.

Uma outra observação.
A propósito da figura do mediador, é dito o seguinte, no Guia que tenho vindo a citar: «a função de mediação é de extrema exigência e implica isenção e imparcialidade em diversas situações». Sublinhei a expressão «extrema exigência» apenas para, mais uma vez, realçar o pouco comedimento do discurso, porque o que verdadeiramente interessa é a parte da «isenção» e da «imparcialidade», que está intimamente ligada à escolha do termo mediador, e à concepção que lhe está subjacente.
Porquê a designação de «mediador»? Porquê «isenção» e «imparcialidade»? O que é que, na realidade, há a mediar que dê substância e razão de ser ao termo «mediador» e obriga a chamar a atenção para exigência de «isenção» e de «imparcialidade»? 
Deve ser, certamente, algo de muito importante, a julgar pelo que é dito logo a seguir à frase que citei: «[o mediador] não deve ser formador em qualquer área ou componente da formação do(s) curso(s) em que for mediador, salvo em casos excepcionais, devidamente justificados e com autorização da entidade competente para a autorização do funcionamento do curso» (o sublinhado continua a ser meu). É notável a necessidade de emproamento e de formalismo e de aparentar um nível de exigência e de complexidade pretensamente só acessível a especialistas seniores. Mas adiante, voltando à questão: afinal o que medeia o mediador? Diz o Guia, o mediador «faz a mediação do grupo de formação, atendendo às suas dinâmicas e às características de cada adulto em particular na negociação de atitudes e objectivos face à formação, ou até mesmo na resolução de diferendos.» Confesso a minha dificuldade em perceber o que significa exactamente fazer «a mediação do grupo de formação», mas para além desta dificuldade, que é minha, o que é que o mediador faz a mais que qualquer director de turma do ensino secundário não faça, no que diz respeito especificamente ao conceito de mediação acima enunciado? Nada, a não ser que esteja a ser dado um significado muito particular aos termos «negociação» e «diferendo». Se, aqui, o significado de «negociação» e «diferendo» nos pretende remeter para contextos em que duas partes (neste caso, formandos e formadores) têm interesses divergentes ou antagónicos e, pela via da negociação, cujo o protagonista seria o mediador que, com «isenção» e «imparcialidade», procuraria chegar a compromissos, através de cedências de ambas as partes; se é este o significado com que são utilizados aqueles dois termos, distancio-me totalmente de tal concepção. Em contexto educativo tais significados não têm cabimento — a relação educativa não é uma relação de natureza sindical ou sequer de natureza aparentada. 
Se não é nesse sentido, então o termo «mediador» nada traz de novo e a sua introdução é arbitrária ou, e mais uma vez, de cariz ideológico.