«Revejo ainda, por cima do seu lenço de pescoço rosa-malva, sedoso e tufado, o doce espanto dos seus olhos, a que juntara, sem se atrever a destiná-lo a ninguém mas que todos pudessem tomar a sua parte dele, um sorriso um pouco tímido de suserana que parece pedir desculpa aos seus vassalos, e que os ama. Esse sorriso recaiu em mim, que não tirava os olhos dela. Então, recordando-me desse olhar que ela deixara deter-se em mim, durante a missa, azul como um raio de sol que tivesse atravessado o vitral de Gilberto, o Moldavo, disse para comigo: "Não há dúvida de que está a dar-me atenção." Eu julguei que lhe agradava, que ela ia tornar a pensar em mim depois de sair da igreja, que por minha causa talvez se pusesse triste ao entardecer em Guermantes. E imediatamente a amei, porque se às vezes pode bastar, para amarmos uma mulher, que ela nos olhe com desprezo, como eu julgava que fizera a menina Swann, e que pensemos que ela nunca nos poderá pertencer, às vezes também pode bastar que ela olhe para nós com bondade, como fazia a senhora de Guermantes, e que pensemos que ela poderá pertencer-nos. Os seus olhos azulavam como uma pervinca impossível de colher e que porém ela me tivesse dedicado; e o Sol, ameaçado por uma nuvem, mas dardejando ainda com toda a sua força sobre a praça e na sacristia, conferia uma carnação de gerânio aos tapetes vermelhos que haviam estendido pelo chão para a solenidade e sobre os quais avançava sorrindo a senhora de Guermantes, e acrescentava à sua lã um aveludado róseo, uma epiderme de luz, aquela espécie de ternura, de grave suavidade na pompa e na alegria que caracterizam certas páginas do Lohengrin, ou certas pinturas de Carpaccio, e que nos fazem compreender que Baudelaire tenha podido aplicar o epíteto delicioso ao som da trombeta.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do Lado de Swann, Relógio D'Água.