sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Nacos

«— Bem, vamos, são horas de te ires embora — disse-me o meu tio.
Levantei-me com uma vontade irresistível de beijar a mão da dama de cor-de-rosa, mas parecia-me que seria um tanto audacioso, como um rapto. O coração batia-me enquanto dizia de mim para mim: "Devo, não devo", e depois deixei de me perguntar o que devia fazer para poder fazer qualquer coisa. E, num gesto cego e insensato, despojado de todas as razões que momentos antes achava em meu favor, levei aos lábios a mão que ela me estendia.
— Como ele é amável! Já é muito galante, tem olho para as mulheres: sai ao tio. Vai ser um perfeito gentleman — acrescentou, apertando os dentes para dar à frase uma entoação ligeiramente britânica. — Não poderá ele vir uma vez tomar a cup of tea, como dizem os nossos vizinhos ingleses? Bastava que me mandasse um "azul" pela manhã.
Eu não sabia o que era um "azul". Não compreendia metade das palavras que a dama dizia, mas o receio de que ocultassem alguma pergunta a que fosse indelicado não responder impedia-me de deixar de as ouvir com atenção, e isso cansava-me muito.
— Não, é impossível — disse o meu tio, encolhendo os ombros —, ele está muito ocupado, trabalha muito. Tem todos os prémios do seu curso — acrescentou em voz baixa para eu não ouvir esta mentira e não a contradizer. — Quem sabe? Talvez seja um pequeno Vitor Hugo, sabe, uma espécie de Vaulabelle.
— Eu adoro os artistas — respondeu a dama de cor-de-rosa —, só eles é que compreendem as mulheres... Só eles e os seres de escol como você. Desculpe a minha ignorância, meu amigo. Quem é Vaulabelle? Serão os volumes dourados que estão na pequena estante envidraçada do seu toucador? Sabe que prometeu emprestar-mos, e hei-de ter todo o cuidado com eles.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do Lado de Swann, Relógio D'Água.