quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Nacos

«Eu sentia uma pequena decepção, porque aquela jovem dama não era diferente das outras bonitas mulheres que vira às vezes na minha família, nomeadamente da filha de um dos nossos primos, a casa de quem ia todos os anos no primeiro de Janeiro. Apenas mais bem vestida, a amiga do meu tio tinha o mesmo olhar vivo e bom, tinha um ar igualmente franco e afectuoso. Não lhe encontrava nada do aspecto teatral que admirava nas fotografias de actrizes, nem da expressão diabólica que por certo estaria relacionada com a vida que devia levar. Custava-me a acreditar que fosse uma cocotte, e sobretudo não acreditava que fosse uma cocotte elegante se não tivesse visto o carro de dois cavalos, o vestido cor-de-rosa, o colar de pérolas, se não soubesse que o meu tio só conhecia as de mais alta categoria. Mas perguntava a mim mesmo como é que o milionário que lhe dava o carro de cavalos e a moradia e as jóias podia ter prazer em gastar a sua fortuna com uma pessoa que tinha um ar tão simples e tão como deve ser. E, no entanto, pensando no que devia ser a sua vida, a sua imoralidade perturbava-me talvez mais do que se se concretizasse à minha frente numa aparência especial — por ser assim invisível como o segredo de um romance qualquer, de algum escândalo que a fizera sair de casa dos pais burgueses e a entregara a toda a gente, que fizera desabrochar em beleza e levado para o mundo dos costumes duvidosos e para a notoriedade esta cujos jogos fisionómicos ou tons de voz, semelhantes a tantos outros que eu já conhecia, me faziam apesar de tudo considerar uma menina de boa família, e que já não era de família nenhuma.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do Lado de Swann, Relógio D'Água