«Eu sentia uma pequena decepção, porque aquela jovem dama não era diferente das outras bonitas mulheres que vira às vezes na minha família, nomeadamente da filha de um dos nossos primos, a casa de quem ia todos os anos no primeiro de Janeiro. Apenas mais bem vestida, a amiga do meu tio tinha o mesmo olhar vivo e bom, tinha um ar igualmente franco e afectuoso. Não lhe encontrava nada do aspecto teatral que admirava nas fotografias de actrizes, nem da expressão diabólica que por certo estaria relacionada com a vida que devia levar. Custava-me a acreditar que fosse uma cocotte, e sobretudo não acreditava que fosse uma cocotte elegante se não tivesse visto o carro de dois cavalos, o vestido cor-de-rosa, o colar de pérolas, se não soubesse que o meu tio só conhecia as de mais alta categoria. Mas perguntava a mim mesmo como é que o milionário que lhe dava o carro de cavalos e a moradia e as jóias podia ter prazer em gastar a sua fortuna com uma pessoa que tinha um ar tão simples e tão como deve ser. E, no entanto, pensando no que devia ser a sua vida, a sua imoralidade perturbava-me talvez mais do que se se concretizasse à minha frente numa aparência especial — por ser assim invisível como o segredo de um romance qualquer, de algum escândalo que a fizera sair de casa dos pais burgueses e a entregara a toda a gente, que fizera desabrochar em beleza e levado para o mundo dos costumes duvidosos e para a notoriedade esta cujos jogos fisionómicos ou tons de voz, semelhantes a tantos outros que eu já conhecia, me faziam apesar de tudo considerar uma menina de boa família, e que já não era de família nenhuma.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do Lado de Swann, Relógio D'Água