«Uma das características mais marcantes da nossa realidade pública orçamental é constituída pelos desvios, permanentes e gigantescos. Que o povo paga, claro. São raros os orçamentos que não são rectificados uma ou mais vezes ao longo do ano, para acomodar os vários desvios. Os desvios na despesa pública vão sendo conhecidos a conta-gotas. Ora no continente, ora na Madeira, ou até numa das mais pequenas autarquias do interior. Temos uma vaga ideia sobre os montantes envolvidos, mas estamos longe de conhecer as suas causas ou sequer a sua natureza.
Os desvios na despesa são, logo à partida, um mistério, pois não poderiam sequer existir. Em primeiro lugar, porque não pode haver contratualização de despesa em nome do Estado sem uma justificação documental conforme. Se admitíssemos que tal pudesse acontecer, que uma estrada fosse encomendada sem qualquer requisição, que se requeressem obras públicas como quem manda vir uma pizza — então essas obras pura e simplesmente não deveriam ser liquidadas. Em qualquer caso, esta conduta seria ilegal. E indiciaria uma proximidade excessiva, ou até intimidade, entre contratantes e contratados, ou seja, sintoma de promiscuidade total entre negócio e política.
Em alternativa, e partindo do princípio de que na origem de cada desvio está um documento que suporte a respectiva despesa, ele tem de se alicerçar num orçamento previamente aprovado. Pois, a não ser assim, o detentor de cargo público que contrate uma despesa não orçamentada incorre em responsabilidade criminal e o Ministério Público deve requerer a imediata cessação do seu mandato.
No entanto, qualquer que seja a origem dos desvios, é incompreensível a passividade crónica das entidades fiscalizadoras, em particular do Tribunal de Contas (TC), cujo presidente assume que tem vindo a alertar para estas questões, mas reconhece que pouco tem feito para as impedir ou evitar. Julgo que é ao TC que compete esclarecer a opinião pública sobre as desconformidades orçamentais de que tanto se fala. Afinal, falamos de despesa não contratada e, mais tarde, indevidamente assumida pelo políticos? Ou de despesa contratada sem cabimentação orçamental? Expliquem-se.
Até que chegue esse esclarecimento, o único desvio de que estaremos devidamente informados é o desvio de dinheiro dos nossos bolsos para os dos responsáveis por todos estes desvarios.»
Paulo Morais, Da Corrupção à Crise — Que Fazer?, Gradiva