domingo, 3 de fevereiro de 2013

Nacos

«Mas, ao olhar para o rosto do outro, apercebeu-se de como aquele embusteiro era velho. Oitenta e cinco anos, pelo menos, com manchas de fígado cor de sépia, desde a testa que mais parecia um pergaminho até ao pescoço franzido, um ar de inanidade no maxilar frouxo e um lábio inferior pendente e molhado, ligeiramente trémulo. Claro que os velhos tinham de passar à frente. Tinham menos tempo. Estavam quase mortos. Tinham mais pressa do que ele e impunha-se o perdão, ou mesmo um pedido de desculpa. Mas o velho desvanecera-se, ficara para trás, fora do alcance da vista, numa situação desfavorável. Era tarde de mais para lhe oferecer um lugar favorável na fila.
E foi assim que Beard, o implacável flagelo dos fracos, apareceu perante uma funcionária da imigração, um tanto ou quanto humilhado, com um pouco de aversão por si mesmo e, por conseguinte, não tão surpreendido por a sua fotografia ou a sua altura, a sua data de nascimento ou a sua parentela poderem ser uma fonte de suspeita e suscitarem um certo franzir de sobrolho por parte de alguém entendido na matéria. A funcionária passou as folhas do passaporte numa sequência rápida, olhou de relance para Beard, voltou a passá-las para trás e, em seguida, após um momento de reflexão, colocou o documento virado para baixo sobre um scanner. Teria vinte e muitos anos, possivelmente menos do que metade da idade dele. Beard suspeitou que o país de origem dos pais dela devia ser a Etiópia. Se agora ela deslizasse do banco alto, saísse do lugar e se desembaraçasse dos sapatos de salto alto, mesmo assim devia ter quase mais vinte centímetros do que ele.
Beard era rotundo, tinha movimentos lentos e estava afogueado — e atrasado. Ela estava harmoniosamente sintonizada com a sua tarefa do momento: guardiã das portas da nação contra os indesejáveis. Observou-a a olhar fixamente para os pormenores a seu respeito no ecrã, enquanto a mão direita, ligeiramente arroxeada na palma, adejava despreocupada sobre o teclado em busca de qualquer outro ângulo sobre ele, de uma perspectiva mais profunda, como Beard de súbito ficou esperançado. Das altas traves internas do átrio da imigração pareceu abater-se um silêncio semelhante a neve espessa, uma frialdade deliciosa, e toda a sensação de pressa o abandonou. Aquela pele de textura fina, absorvente da luz, amante da luz, aquelas maçãs do rosto elevadas (ele via apenas uma) com uma depressão ligeira e uma curva bem delineada, aqueles olhos castanhos a repousarem com gravidade no seu processo, aquela união feliz, ou assim lhe pareceu, de graça e inteligência. Havia milénios, sob frescos dosséis, em qualquer reduto deserto e recôndito, os genes de uma gazela haviam penetrado no património genético humano local. Essa fantasia de miscigenação podia ser uma forma de racismo ou de simples adoração, mas, de qualquer forma, ele não estava com disposição para a eliminar.»
Ian McEwan, Solar, Gradiva.