sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Fragmenti veneris diei

«Foi assim que Pelletier e Espinoza, que passaram por Bolonha como dois fantasmas, na sua viagem seguinte a Londres perguntaram a Norton, dir-se-ia que ofegantes, como se não tivessem parado de correr ou de trotar, em sonhos ou na realidade, mas ininterruptamente, se esta, a querida Liz que não tinha podido ir a Bolonha, amava ou gostava de Pritchard.
E Norton disse-lhes que não. Depois disse-lhes que talvez sim, que era difícil dar uma resposta conclusiva a esse respeito. Pelletier e Espinoza disseram que precisavam de o saber, isto é, precisavam de uma confirmação definitiva. Norton perguntou-lhes porque é que agora, precisamente, se interessavam por Pritchard.
E Pelletier e Espinoza responderam-lhe quase à beira das lágrimas, que se não era agora, quando?
E Norton perguntou-lhes se estavam ciumentos. Então eles disseram-lhe que isso era o que ela queria, que ciumentos de modo algum, que da maneira como eles viviam a sua amizade acusá-los de ter ciúmes era quase um insulto.
E Norton esclareceu que era só uma pergunta. E Pelletier e Espinoza disseram-lhe que não estavam dispostos a responder a uma pergunta tão cáustica ou capciosa ou mal-intencionada. E depois foram jantar e os três beberam mais do que a conta, felizes como crianças, falando dos ciúmes e das funestas consequências deles. E também falando da inevitabilidade dos ciúmes. E falando da necessidade dos ciúmes, como se os ciúmes fossem necessários a meio da noite. Para não mencionar a doçura e as feridas abertas que por vezes, e sob certos olhares, são guloseimas. E à saída apanharam um táxi e continuaram a discursar.
E o taxista, um paquistanês, durante os primeiros minutos observou-os pelo espelho retrovisor, em silêncio, como se não desse crédito aos seus ouvidos, e depois disse qualquer coisa na sua língua e o táxi passou por Harmsworth Park e pelo Imperial War Museum, por Brook Street e depois por Austral e depois por Geraldine, dando a volta ao parque, uma manobra manifestamente desnecessária. E quando Norton lhe disse que se tinha perdido e lhe indicou quais as ruas que ele devia seguir para retomar o rumo, o taxista ficou, outra vez, em silêncio, sem mais murmúrios na sua língua incompreensível, para depois reconhecer que, efectivamente, o labirinto que Londres era tinha conseguido desorientá-lo. Algo que levou Espinoza a dizer que o taxista, sem ter essa intenção, porra, claro, tinha citado Borges, que uma vez comparou Londres a um labirinto. Ao que Norton replicou que muito antes de Borges já Dickens e Stevenson se havia referido a Londres utilizando esse tropo. Coisa que, pelos vistos, o taxista não estava disposto a tolerar, pois logo a seguir disse que ele, um paquistanês, podia não conhecer esse Borges de que falavam e que podia também não ter lido esses senhores Dickens e Stevenson de que também falavam e que até talvez ainda não conhecesse Londres e as ruas suficientemente bem e que por essa razão a tinha comparado a um labirinto, mas que, pelo contrário, sabia muito bem o que era decência e dignidade e que, pelo que tinha ouvido, a mulher ali presente, isto é, Norton, não tinha decência e dignidade e que no seu país isso tinha um nome, o mesmo nome que lhe davam em Londres, que casualidade, e que esse nome era o de puta, embora também fosse lícito utilizar o nome de vaca, ou cabra ou porca, e que os senhores ali presentes, senhores que não eram ingleses a julgar pela sua pronúncia, também tinham um nome no seu país e esse nome era o de chulos ou azeiteiros ou proxenetas ou javardos.
Discurso que, dito sem exagerar, apanhou de surpresa os archimboldianos, que demoraram a reagir, digamos que os impropérios do taxista foram largados em Geraldine Street e que eles só conseguiram articular palavra em Saint George's Road. E as palavras que conseguiram articular foram: pare o táxi imediatamente que queremos sair. Ou então: pare o seu veículo nojento que nós preferimos apear-nos. Coisa que o paquistanês fez sem demora, accionando, ao mesmo tempo que estacionava, o taxímetro, e anunciando aos seus clientes o que estes deviam. Acto consumado ou última cena ou último cumprimento que Norton e Pelletier, talvez ainda paralisados pela injuriosa surpresa, não consideraram anormal, mas que fez extravasar, e em grande medida, o copo da paciência de Espinoza, o qual, ao mesmo tempo que saía, abriu a porta da frente do táxi e extraiu lá de dentro violentamente o condutor, que não esperava uma reacção assim de um cavalheiro tão bem vestido. Esperava ainda menos a chuva de pontapés ibéricos que começou a cair-lhe em cima, pontapés que primeiro era só Espinoza a dar, mas que depois, quando este se cansou, Pelletier também lhe desferiu, apesar dos gritos de Norton que tentava dissuadi-los, das palavras de Norton que dizia que com violência não se resolve nada, que, pelo contrário, este paquistanês depois da tareia ia odiar ainda mais os ingleses, algo que pelos vistos não dava preocupação a Pelletier, que não era inglês, a Espinoza ainda menos, mas os dois, ao mesmo tempo que pontapeavam o corpo do paquistanês, insultavam-no em inglês sem se importaram nada que o asiático estivesse caído, feito um novelo no chão, pontapé vai e pontapé vem, enfia os islão no cu, é lá que ele deve estar, este pontapé é pelo Salman Rushdie (um autor que ambos, por outro lado, consideravam mais para o mau, mas referi-lo pareceu-lhes pertinente), este pontapé é da parte das feministas de Paris (parem de uma vez por todas, gritava-lhes Norton), este pontapé é da parte das feministas de Nova Iorque (vocês vão matá-lo, gritava-lhes Norton), este pontapé é da parte do fantasma de Valerie Solanas, seu filho da mãe e assim até o deixarem inconsciente e a sangrar por todos os orifícios da cabeça, menos pelos olhos.

Quando acabaram de lhe dar pontapés permaneceram uns segundos mergulhados na quietude mais estranha das suas vidas. Era como se, por fim, tivessem feito o ménage à trois, com que tanto tinham fantasiado.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 94-96