sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Fragmenti veneris diei

«Mas agora Norton contava a história de um pintor, o primeiro que tinha vindo viver para o bairro.
Era um tipo novo, de uns trinta e três anos, conhecido no meio, mas não sendo o que se pode chamar de famoso. Na realidade, foi viver para ali porque o arrendamento do estúdio lhe saía mais barato do que noutros lados. Naquela época, o bairro não era tão alegre como agora. Ainda lá viviam os velhos operários que recebiam da Segurança Social, mas já não havia gente nova nem crianças. As mulheres primavam pela sua ausência: ou tinham morrido ou então passavam o tempo dentro das suas casas sem nunca saírem à rua. Só havia um pub, tão em ruínas como o resto do bairro. Em suma, tratava-se de um lugar solitário e decadente. Mas isso parece que espicaçou a imaginação e a vontade de trabalhar do pintor. Ele também era um tipo mais ou menos solitário. Ou que se sentia bem na solidão.
Por isso o bairro não o assustou, pelo contrário, apaixonou-se por ele. Gostava de voltar à noite e caminhar por ruas e ruas sem encontrar ninguém. Gostava da cor dos candeeiros da rua e da luz que se espalhava pelas fachadas das casas. Das sombras que se deslocavam à medida que ele se deslocava. Das madrugadas de cor cinza e fuligem. das pessoas de poucas palavras que se reuniam no pub, do qual se tornou cliente. Da dor, ou da recordação da dor, que naquele bairro era literalmente sugada por algo sem nome e que se convertia, depois deste processo, em vazio. Da consciência de que esta equação era possível: dor que finalmente devém vazio. Da consciência de que esta equação era aplicável a tudo ou quase tudo.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 70-71.