terça-feira, 21 de janeiro de 2014

«Gente competitiva»

Vivemos tempos de chumbo marcados por uma gangrena conceptual. 
As nossa «elites» têm um mundo gangrenado na cabeça e querem impô-lo à sociedade. O mundo que elas trazem na cabeça é um mundo rude e grotesco, que atraiçoa a evolução e a história da humanidade, porque reduz o sentido da vida humana a duas coisas: dinheiro e competitividade. Para as nossas «elites» a vida reduz-se e deve reduzir-se a isto: viver segundo as regras que o poder do dinheiro estipula e viver obcecado por ser competitivo, que é precisamente o principal alimento do obsceno poder do dinheiro.
Do discurso pronunciado pelas «elites» nada mais do que isto se ouve e nada mais do que isto se lê — é  uma pobreza medonha.
Até nos mais inesperados sectores da sociedade esta gangrena conceptual se instalou. Há dias, pudemos ouvir num programa televisivo um (ex?)cientista português, António Coutinho, repetir incessantemente a expressão «tem de ser gente competitiva», quando se referia aos investigadores/cientistas. Independentemente do assunto específico da investigação científica de que estivesse a falar, o elemento comum no discurso de Coutinho era sintetizado na designação «gente competitiva»: o que nós precisamos é de «gente competitiva», de «projectos competitivos», de «equipas competitivas», de «trabalho competitivo». Na cabeça de Coutinho fazer ciência tornou-se uma actividade idêntica à de fazer sapatos ou à de vender sabonetes ou à de correr os cem metros. Fazer ciência transformou-se numa competição e os cientistas transformaram-se em vendedores ou corredores, em que o melhor é quem vende mais ou quem corre mais. O conhecimento enquanto valor em si mesmo não existe e se existir não interessa. Por isso, Coutinho deu como exemplo a investigação brasileira que tem publicado muito, mas, como ninguém a lê, não interessa, não é competitiva.
Miguel Seabra, presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) repete o mesmo discurso numa entrevista ao jornal Público«queremos que os [cientistas] portugueses sejam mais competitivos. Quanto melhor e mais competitivo for o nosso sistema, mais facilmente podemos ir a um quadro competitivo, que está desenhado para ser ainda mais competitivo.» Devemos, portanto, ser competitivos para conseguirmos ser mais competitivos de modo a entrarmos num quadro competitivo que ele próprio ainda será mais competitivo...
A cabeça de Seabra é igual à cabeça de Coutinho, que é igual à cabeça de Relvas (que também enchia o discurso com a palavra competitividade) e à de Passos e às da «elite» dominante. Todos eles descobriram o seu arquétipo de vida: ser competitivo.
Para estas cabeças, o mundo e a vida reduzem-se a duas palavras e explicam-se em duas palavras: competitividade e dinheiro. Para ter este é preciso ser aquele e depois de ter este tem de continuar a ser aquele para não perder este. A vida resume-se a este círculo néscio. Mas para além de néscio este círculo está viciado. Na realidade, não havendo igualdade de oportunidades, aumentando as desigualdades, como escandalosamente está a acontecer, a competitividade é uma mentira e os «competitivos» são aqueles que já tinham a corrida ganha antes dela começar.
Conclusão: a uma concepção grotesca da vida junta-se uma narrativa mentirosa.