sexta-feira, 8 de março de 2013

Sobranceria

Foi ontem, salvo o erro, que uma coincidência no encadeamento noticioso de um dos Jornais da SIC evidenciou bem o brutal contraste entre o que os comentantes profissionais afirmam e o que a realidade é. 
A propósito da recente revisão em ligeira alta das perspectivas para o rating da dívida soberana portuguesa, divulgada pela Standard & Poor's, um dos comentantes mais prolixos, no domínio da economia, daquela estação de televisão, José Gomes Ferreira, afirmou, reafirmou e insistiu, ainda que num português pouco escorreito, que «aquilo que nos dizem "a receita não está a resultar" é um engano que nos dizem [...]. E a prova está aqui [na nota positiva da Standard & Poor's].» Segundo o comentante, estamos, sem margem para dúvida, no bom caminho e nele devemos prosseguir. 
Este comentário — produzido numa cómoda cadeira, sob as luzes dos holofotes e os retoques da maquilhagem — foi, por ironia do alinhamento das notícias, imediatamente seguido de uma reportagem sobre a pobreza que as crianças portuguesas estão neste momento a viver. Nessa peça, ouvimos várias mães contarem como são obrigadas a cortar nos medicamentos e na alimentação dos filhos: ouvimo-las dizer que não conseguem comprar carne nem peixe, que não conseguem comprar leite e ovos diariamente, que não conseguem comprar medicamentos que os filhos deveriam tomar, etc., etc. Estas mães falavam enquanto aguardavam pela sua vez para irem recolher um saco de plástico com alimentos, que uma instituição de solidariedade social lhes disponibilizava. 
O sofrimento destas mães e destas crianças não tem descrição e é horrível. É horrível mas vai continuar e vai alastrar. Vai continuar enquanto quem decide e quem comenta a vida dos portugueses estiver a decidir e a comentar comodamente sentado nos gabinetes climatizados ou sob as luzes de holofotes e retoques de maquilhagem; vai continuar enquanto quem decide e quem comenta mantiver as mordomias que os isola da vida e lhes desenvolve uma insuportável sobranceria em relação à desgraça dos outros.