Tem sido curioso observar a reacção de alguns à ideia de taxar os depósitos bancários no Chipre (medida que acabou de ser reprovada pelo parlamento cipriota). De modo praticamente unânime, a condenação veemente da taxação dos depósitos tem sido sustentada com o recurso ao mundo dos «valores e dos princípios».
Não sei, ninguém sabe, se as vozes que durante os dois últimos dias se têm pronunciado de modo inequívoco e exaltado contra tal taxação estão a ser mesmo sinceras ou se, pelo contrário, estão a ser cínicas, dissimuladas, velhacas. Não sabemos, por isso não podemos acusar ninguém. Mas, não podendo nós enveredar pela via da acusação infundada, podemos enveredar pela via dos factos. E os factos são estes:
1. Segundo estes indignados, a repulsa pela taxação deve-se à «escandalosa violação de princípios básicos e de valores fundamentais». Procurei estar atento aos contornos desta escandalosa violação e tentei compilar, a partir do que li e ouvi das vozes indignadas, quais foram os princípios básicos e os valores violados. De concreto apurei o seguinte: a nível dos valores, consegui perceber um, o valor da «confiança» — segundo os agora indignados foi violado o valor da «confiança»; a nível dos princípios, consegui perceber que foi violado o «princípio do adquirido», que, segundo entendi, refere-se ao princípio adquirido de que «o dinheiro no banco está seguro».
2. Estranha mas curiosamente, a quase totalidade destas vozes só agora protesta, só agora se indigna, só agora fala de valores, de princípios, de direitos adquiridos, de violação da confiança, etc., etc. Só muito recentemente mesmo — mais em concreto: só a partir do nosso último orçamento de Estado e agora com a taxação dos depósitos no Chipre — é que surgiu em alguns uma apurada sensibilidade aos valores e aos princípios.
Em 2010, quando Sócrates e Teixeira dos Santos anunciaram o corte entre 5% e 10% nos vencimentos dos funcionários públicos, não foi o valor da confiança que foi violado? Precisamente o valor da confiança que nos assegurava que o Estado cumpria os compromissos e os contratos que assinava com os seus trabalhadores? Esta confiança não foi violada? Sócrates e Teixeira dos Santos não violaram também o princípio de um direito adquirido, neste caso, o direito ao salário contratado?
Parece óbvio que estas violações aconteceram, todavia, não me recordo de ter ouvido muitas das vozes que agora oiço, não me recordo de as ter ouvido esboçar uma crítica ou sequer um reparo a tais violações.
Em 2011, quando Coelho e Gaspar cortaram meio subsídio de Natal não foi o valor da confiança que foi violado? Precisamente o valor da confiança que nos assegurava que o Estado cumpria o compromisso de pagar por inteiro o subsídio de Natal? Esta confiança não foi violada? Coelho e Gaspar não violaram igualmente o princípio de um direito adquirido, neste caso, o direito ao subsídio de Natal integral?
Parece óbvio que estas violações aconteceram, porém, não me recordo de ter ouvido muitas das vozes que agora oiço, não me recordo de as ter ouvido esboçar uma crítica ou sequer um reparo.
Em 2012, quando Coelho e Gaspar confiscaram dois subsídios (o de férias e o de Natal) aos funcionários públicos e pensionistas e mantiveram o corte dos salários, entre 5 e 10%, perfazendo, para muitos, um corte nos rendimentos acima de 20%, não foi o valor da confiança que foi atingido? Precisamente o valor da confiança que nos assegurava que o Estado cumpria os compromissos e os contratos que assinava com os trabalhadores? Esta confiança não foi violada? Coelho e Gaspar não violaram também o princípio de um direito adquirido, neste caso, o direito adquirido ao subsídio de férias, ao subsídio de Natal e ao vencimento, por inteiro?
Parece óbvio que estas violações aconteceram, mas continuo sem me recordar de ter ouvido muitas das vozes que agora oiço, continuo sem me recordar de as ter ouvido esboçar uma crítica ou sequer um reparo.
Apenas agora, em 2013, ano em que estas violações se estenderam a toda a gente, e não apenas aos funcionários públicos e pensionistas, é que, para alguns, a defesa intransigente dos «valores e dos princípios» despertou do torpor. E, agora, com a simples possibilidade da taxação dos depósitos se estender do Chipre até cá, o despertar deu origem à mais veemente e declamatória defesa dos «valores e dos princípios». De repente, os «valores e os princípios» passaram a ser importantes, fundamentais, arquétipos de uma civilização. E aqueles que até há pouco tempo nos diziam, nos repetiam, nos matraqueavam que os direitos adquiridos já tinham acabado, que eram coisas do Jurássico, surgem neste momento fervorosos defensores da irreversibilidade dos direitos.
Mas certamente que nenhuma desta gente está a ser cínica ou dissimulada ou velhaca. Certamente que não.