sábado, 30 de março de 2013

Três notas sobre uma entrevista

1. Quanto ao modo como os comentantes profissionais comentaram a entrevista.
Há uns anos, quando um (sui generis) ex-primeiro-ministro surgia nas televisões e nos jornais a acusar retrospectivamente o então Presidente da República Jorge Sampaio de falta de isenção ou surgia retrospectivamente a defender a acção do Governo a que presidiu durante uns meses, era depreciativamente considerado pelos comentantes profissionais como alguém que não tinha sabido perder, como alguém que queria ajustar contas com o passado, como alguém que ainda não tinha percebido que o seu tempo já tinha passado, como alguém que queria reescrever a história e coisas de género idêntico.
Esta semana, surgiu na televisão um outro ex-primeiro-ministro a repetir justamente o discurso desse anterior ex-primeiro-ministro: repetiu que a culpa tinha sido da falta de isenção do Presidente da República (desta vez Cavaco Silva) e repetiu que a sua actuação, enquanto chefe de dois governos, tinha sido incólume. Todavia, apesar do discurso ser na essência o mesmo, grande parte dos comentantes profissionais não repetiu agora o que tinha dito há anos. Agora os títulos foram: «O regresso de Fulano de Tal», «O animal feroz voltou», «Fulano de Tal: um político combativo», etc. Até mesmo aqueles que admitem tratar-se de um «ajuste de contas», não o fazem com sentido pejorativo, fazem-no como o reconhecimento do exercício de um suposto direito.
Esta disparidade avaliativa por parte dos comentantes profissionais parece estranha, mas não é. Há dias transcrevi neste blogue uma passagem do livro Mário Soares — Uma Vida, de Joaquim Vieira, publicado há pouco mais de um mês. Nessa passagem conta-se que o ex-primeiro-ministro agora regressado manifestava junto de Mário Soares uma enorme satisfação pelo seu candidato a presidente da República, Manuel Alegre, ter perdido as eleições. Isto é, depois de o ter  apoiado durante toda a campanha eleitoral, o então secretário-geral do PS estava radiante e feliz com a derrota daquele que publicamente tinha defendido. Ora esta passagem do livro, que descreve um comportamento infame, um comportamento que repugna, foi ignorada pela generalidade dos órgãos de comunicação social — salvo o erro, apenas o semanário Sol a noticiou. Esta deliberada omissão revela a teia de influências, dependências e cumplicidades que o agora recém-regressado político construiu e mantém junto do meio jornalístico. Não admira, portanto, a indecorosa disparidade de critérios utilizados para descrever e julgar o comportamento destes dois ex-primeiros-ministros.
É neste lamaçal que vive grande parte da nossa imprensa.

2. Quanto à substância da entrevista.
Tenho dificuldade em descobrir o que de verdadeiramente novo o recém-regressado ex-primeiro-ministro tenha dito na entrevista de quarta-feira. Vi que falou do mesmo, que disse o mesmo, que repetiu o mesmo que já tinha repetido até à exaustão logo após a demissão e durante a campanha eleitoral de 2011. Socorreu-se dos mesmos trejeitos faciais (que, como sempre, alternam entre a cândida inocência e o olhar supostamente ameaçador) e revelou a mesma falta de pudor e de decência política que sempre o caracterizou.
Foi precisamente a falta de pudor e de decência política que lhe permitiu tecer acusações ao actual Governo. Nós, que somos vítimas desta desgraçada política, temos o direito de tecer acusações, mas ele, o recém-regressado ex-primeiro-ministro, não o tem. Não o tem porque foi ele precisamente quem iniciou e abriu o caminho ao que agora está a acontecer. 
Foi ele precisamente quem iniciou as malfeitorias aos pensionistas, quando lhes congelou as pensões e quando lhes quis aplicar os primeiros cortes. 
Foi ele precisamente quem começou a cortar o tempo de subsídio aos desempregados. 
Foi ele precisamente quem começou a cortar os vencimentos dos funcionários públicos. 
Foi ele precisamente quem começou a cortar o abono de família.
Foi ele precisamente quem começou a subir os impostos de modo desnorteado. 
Foi ele precisamente quem começou a fazer da política educativa uma gigantesca encenação: (pseudo) avaliação docente; (pseudo) Novas Oportunidades; (pseudo) modelo de gestão democrático. 
Foi ele precisamente que iniciou a criação de mega-agrupamentos. 
Foi ele precisamente quem defendeu os interesses do mundo financeiro, permitindo o pagamento de taxas reais de impostos inferiores às restantes empresas. 
Foi ele precisamente quem anuiu às exigências das entidades patronais, permitindo uma drástica diminuição no pagamento da indemnização por despedimento. 
Foi ele precisamente quem permitiu às grandes empresas a distribuição antecipada de dividendos, como estratégia de fuga ao aumento dos impostos de 2011. 
Foi ele precisamente quem mais começou a empobrecer o país até o conduzir à bancarrota.
Foi ele precisamente quem fez da governação um contínuo acto de arrogância, de teimosia, de crispação, de promoção da imagem pessoal e de satisfação de vaidades.
Foi ele precisamente quem dirigiu o país enganando sistematicamente os portugueses: anunciou que tínhamos sido os últimos a entrar em crise e que tínhamos sido os primeiros a sair da crise; proclamou que éramos a vanguarda disto, daquilo e daqueloutro; garantiu que não precisávamos de pedir ajuda externa; jurou que os impostos não iriam subir; afiançou que o emprego iria crescer; prometeu que... 
E a listagem podia continuar, continuar e continuar...
rating da credibilidade deste ex-primeiro-ministro é idêntico ao rating da nossa dívida pública: ambos estão no nível de lixo. Julgo não me enganar se disser que daqui a algumas semanas, quando passar o efeito da novidade, não serão muitos aqueles que vão ter paciência para ouvir e ver o novel comentante. Politicamente desacreditado, culturalmente carenciado, discursivamente mecanizado e sem sentido de humor, certamente que este homem se tornará um enfado para quem o escutar.

3. Quanto ao futuro do entrevistado.
Seria muito grave que alguém procurasse ver no regresso deste político medíocre a possibilidade de uma alternativa. Ele, Durão Barroso, Santana Lopes e Passos Coelho formam o quarteto político que destruiu o país. Ele, como os outros três, é um homem sem futuro. Merecidamente.