terça-feira, 1 de julho de 2008

Já não se escrevem cartas de amor

«Pontualmente, às nove perfilei-me ao balcão da perfumaria. A primeira cliente chegou às dez e comprou um sabonete Ach. Brito. Seguiu-se uma loura antipática que me fez andar num virote à procura de perfumes Madeira do Oriente, muito em voga nesses idos de 50. Perto do meio-dia chegou uma senhora no seu final de juventude, sardenta, feições correctas, lábios chamativos pintados de batom vermelho-vivo.
Notei surpresa no rostro dela quando avancei para cumprir a minha função. Esperaria, talvez, a Elvira ou a Maria do Rosário e não resistiu a perguntar:
- É novo, aqui?
- Entrei às nove. - Um pouco de orgulho levou-me a acrescentar: - Sou filho do senhor Martins, o dono.
- Compreendo. Então também é Martins. E que mais?
- Duarte. E a senhora?
Esboçou um sorriso meio provocador:
- Débora. Gosta?
Hesitei mas atrevi-me:
- Do nome ou da dona?
Do sorriso passou ao riso aberto e achei que era o tipo de mulher com quem se gosta de ter uma conversa. Mas não respondeu, seguiu directa para a questão comercial:
- Uma caixa de pó-de-arroz Tokalon.
Fui correndo as prateleiras com olhos de quem não sabe:
- Ora deixe ver. Tokalon... Tokalon... Não deve andar longe.
- Ali - indicou ela a dedo. Seria cliente assídua, conhecia os cantos à casa.
Resolvido o problema Tokalon pareceu-me adequado sugerir:
- E não pretende um boa água-de-colónia para surpreender o seu marido?
Pela primeira vez, mostrou uma expressão sombria:
- Já surpreendi o meu marido. Agora não há marido lá em casa.»

Mário Zambujal, Já Não se Escrevem Cartas de Amor, pp. 76-78.