quarta-feira, 2 de julho de 2008

E agora?

Perfilados de medo agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Alexandre O' Neill

Com o ano lectivo a terminar, dei comigo a interrogar-me: que mais te irá acontecer? Até onde conseguirás resistir? O que te resta do estado a que isto chegou?

E vejo que (me) resta pouco, muito pouco, até da esperança...

E constato que o outrora inimaginável (?) aconteceu, vai-se instituindo, tornou-se inevitável.

E decido-me, num exercício quase masoquista, por uma breve reflexão sobre este presente/futuro onde, desgraçadamente, se inscreve uma parte da existência dos que, como eu, decidiram um dia optar por este modo de vida.

E salta-me à vista que a política educativa(?) planeada e executada por tecnocratas incompetentes ao serviço dos mais sinistros desígnios, em pouco mais de três anos, deu nisto (e em muito mais...):

1. Ensina-se menos e pior, aprende-se menos e pior...

2. Uma monstruosa actividade burocrática, particularmente nos 2º e 3º ciclos do ensino básico, está a transformar os professores em verdadeiros autómatos...

3. As energias dispendidas com o (inútil) "monstro burocrático" provocam um desgaste de tal ordem que quase nada resta para se ser PROFESSOR...

4. As grelhas, as fichas, os infindáveis registos, os planos (de tudo... e de nada) e toda uma parafernália de instrumentos ditos pedagógicos é que contam. Importante é preencher as células, as colunas, fazer com que cada aluno (leia-se número) caiba num dos muitos chavões, que se resolva(?) a charada em que se tornou a avaliação. Deixou de ser possível avaliar substantivamente, procurar entender os avaliados, resolver com dignidade a, porventura, mais melindrosa das tarefas que cabem a um professor...

5. O aluno é cada vez mais um somatório de células de múltiplas folhas de excel...

6. O aluno deixou de ser sujeito para passar a ser algarismo, número, sigla, referencial estatístico...

7. O aluno bem comportado, mas com deficientes resultados nas aprendizagens requeridas, tem maior garantia de "sucesso" do que aquele miúdo irrequieto que até ultrapassou os mínimos exigidos, mas é "mal comportado". Prefere-se a cópia bonita a um escorreito, mas feio, ditado...

8. Proliferam, e vão-se assumindo, os «titulares» com estatuto de novos capatazes. Falam a linguagem do Poder, desse Poder que fez de muitos deles licenciados por decreto, desse Poder que decretou que gente intelectualmente menor pode avaliar(?) gente com formação académica efectiva, com currículo profissional inquestionável. Bacharéis nas mais variadas áreas transformaram-se em licenciados (ou mesmo mestres) em Animação sociocultural(!), Artes Decorativas(!)... (na Universidade do Algarve já foi criado o Mestrado em Gestão de Campos de Golfe!). Enfim, gente que vivia em permanente conflito com a gramática e que hoje disfarça tudo com o recurso (quase exclusivo) ao texto informático. Tudo depende do corrector ortográfico...

9. Quase magnânimos, os novos "avaliadores dos desempenhos" proclamam que gostariam de dar excelente a todos os avaliados... mas não podem. Entretanto, vão alinhando as grelhas com que farão indigestos cozinhados. Alguns estiveram na manif. dos 100 mil, não fosse o diabo tecê-las...

10. A maioria dos professores nos últimos escalões da carreira conhece hoje os efeitos mais perversos da mais perversa alteração até hoje feita numa carreira profissional pública. Não há memória, na história da educação deste país, de iniquidade maior do que a que resultou dos critérios legalmente impostos para o famigerado concurso a «professor titular». Ei-los aí, titulares e convictos de que o "título" é tudo (já são chamados de PT, julgam-se Optimus... mas são mais a Voz do Dono, perdão, Vodafone). Assumem, cada vez com maior arrogância, a presunção de que o "título" os colocou acima de muitos com mais e melhor formação académica, com currículo indiscutivelmente mais relevante, com outras provas dadas...

11. A maioria dos professores sabe o que valem, o que são, o que significam os capatazes que tão bem servem a política actual (e que, obedientemente, até recebem formação para isso)...

12. A maioria dos professores já sente na pele o mando, a negação do debate livre, a imposição da norma (mesmo que contrária ao espírito e à letra da norma maior - A Constituição), a inconveniência da discussão aberta, a importância de saber obedecer...

13. O "espírito ASAE", verdadeiro paradigma do actual Poder, está instalado nas escolas. É só uma questão de tempo até que o poema de Alexandre O' Neill faça todo o sentido...

P.S. (Post Scriptum, para que conste): Sei que este é o texto politicamente menos correcto que publiquei neste blogue. Faço-o com a responsabilidade com que sempre assumi os meus actos, sem ofender quem quer que seja, exercendo apenas um direito de cidadania, acima de tudo respeitando os imperativos éticos que nunca deixarão de mover-me. Imperativos esses que nem a lei da sobrevivência esmagará.